terça-feira, junho 26

Alumbramento

Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela...e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar.

Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi... vi o rastro do senhor!...

E vi a Via Láctea ardente...
Vi comunhões... capelas...véus...
Súbito... alucinadamente...

Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

- Eu vi-a nua... toda nua!


                                                           Clavadel, 1913 
                                          [Estrela da Vida Inteira, Manuela Bandeira]

terça-feira, junho 19

É Necessário Estar Sempre Bêbado

"É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso: eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas - de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que fala, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de responder: - É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor."
     
                                                                                         Baudelaire (1869)

                             

sexta-feira, junho 15

Tinha que ser o Velhinho


           Um caminhoneiro, bem velhinho, estava manobrando seu caminhão cheio de entulhos de obras na caçamba para sair da Universidade. Para sair, ele deveria manobrá-lo de uma maneira delicada, pois a largura e a altura do espaço eram bem estreitas, mas permitindo que o caminhão conseguisse passar mesmo assim. Afinal, ele entrou por ali. Eram três colunas de sustentação à esquerda e à direita totalizando seis colunas. Naquele espaço, também, ocorre o trânsito dos funcionários, estudantes e professores que entram e saem da Universidade com tamanha frequência em direção à Santa Casa.
A odisséia começou quando ele manobrou seu caminhão laranja, também velho e vivido, para sair e notou que não conseguiria, pois havia um carro de um funcionário impedindo ainda mais o caminho. Da forma como ele fora estacionado, o espaço para o caminhão passar ficara mais estreito ainda. O suficiente para o caminhão não conseguir passar e o velhinho coçar a sua cabeça cheia de cabelos brancos.
Ele desligou o caminhão. Abriu a porta. Saiu. Era tão pequeno que quando abriu a porta para sair, não o via-se, viam-se suas pequeninas botas pretas tocando o chão. Quando ele bateu a porta, tinha cerca de 1,50 cm. Ficou parado analisando o problema. Seus lábios balbuciaram algo. Provavelmente algum comentário espirituoso sobre a situação. Coçou a cabeça e andou até os pilares. Olhou pra cima, olhou pra baixo, olhou pros lados. Virou-se até o carro e voltou a olhar para os pilares. Ficou parado se perguntando o que poderia fazer. Decidiu tomar uma atitude: foi até o carro, parou do lado dele e deu passos bem largos até o pilar da direita. Eram duas passadas e mais um meio pé dele. O velhinho já era pequeno, que dirá suas passadas! Voltou a coçar a cabeça e a resmungar. Olhou pro caminhão e pro espaço estreito. Seus olhos eram de quem não sabia o que fazer.
Encostado no caminhão laranja, de braços cruzados, pensou e pensou. Pensou tanto que parecia que nunca havia pensado na vida. Parecia que fazia algo novo. Deu um tapa na sua coxa e foi até a portaria falar com alguém. Explicou a situação. Mostrou o seu tempo. Precisava sair dali o quanto antes. A portaria pediu para um dos seguranças acompanharem-no. O velhinho não pareceu satisfeito. Não era isso!
O segurança foi até a cena da ópera e perguntou qual era o problema. O velhinho mostrou de braços abertos como se abraçasse o ar o que estava acontecendo (Como se fosse óbvio, apesar de ser!). O segurança perguntou se ele não conseguiria passar por ali. O velhinho negou. O segurança insistiu. O velhinho, numa tentativa empírica, demonstrou com suas passadas pequenas que não havia espaço. O segurança concordou. Os dois voltaram à portaria. O porteiro, o segurança e o velhinho, voltaram à cena...
O velhinho, junto com o segurança, explicou o que estava acontecendo. O porteiro perguntou se ele não conseguiria passar. O velhinho, não acreditando, decidiu mostrar as passadas novamente. O porteiro concordou. Ele também perguntou de quem era aquele carro. O velhinho negou com a cabeça. Não sabia. O segurança pegou seu rádio e mandou chamar alguém. Pediram para o pequeno senhor esperar, pois iriam fazer algo. Ele disse que tinha um tempo a seguir e os outros dois nada falaram. Deixaram-no ali esperando.
O pobre velhinho continuava preocupado com o seu caminhão atravancando o caminho. Em um gesto de esperança, desespero ou dúvida, talvez, ele voltou a contar os passos e a comparar com o tamanho do caminhão. Eis que para melhorar a história, surge uma van. O velhinho dá sinal para voltarem, mas não o obedecem. Param a van atrás do carro e no caminho da saída e dizem para ele tirar o caminhão dali. O velhinho explica a situação. Os motoristas saem dela se rindo e falam que deixarão a van estacionada ali. Ele chega a avisar que já está chegando o dono do carro. Os motoristas se riem e falam para o velhinho ficar calmo que eles serão rápidos. Quando saem cada um para fazerem a entrega, escutam-se suas risadas e seus comentários ridicularizando o velho. Ele coça a cabeça e suspira.
O segurança e o porteiro chamaram o motorista do carro que estava na frente da van, explicaram a situação e o motorista reclamou dizendo que o velho que era o chato. O segurança e o porteiro concordaram. Chegando lá fora, cumprimentam o velhinho e o motorista abre a porta do carro. O velhinho pede desculpas pelo transtorno e avisa que de nada adianta agora, pois os motoristas da van a estacionaram do outro lado da saída. O carro do motorista ficava entre a van e o caminhão. O motorista irritou-se e disse que esperaria pouco tempo, pois é um homem ocupado. O porteiro sumira e o segurança ficara olhando a cena quieto. O velhinho foi até o porteiro pedir para ele ajuda-lo a procurar os motoristas da van e este só disse que teriam que esperar. O velhinho coçou sua cabeça e voltou para seu caminhão velho.
Seu chefe ligou. Ele atendeu o celular e explicou o que estava acontecendo. Foi xingado pelo patrão e as pessoas que ficaram ao redor olhando, começavam a rir da situação e a falar quão enrolada ela era. Cada um dava seu palpite, sua análise, seu parecer e explicava, resumidamente, para quem chegava atrasado, o que estava acontecendo.
Eis que os motoristas chegaram. Entraram na van e tiraram-na. O motorista ocupado do carro entrou e fez o mesmo. O velhinho imitou, ligou o motor velho. Barulho, fumaça e desânimo pairaram no ar. Ele manobrou com calma. Girou o volante pra cá e pra lá. A roda fazia o mesmo. De fato, o lugar era muito estreito e o carro atrapalhara. Foi indo aos poucos, lentamente. Quando estava quase na saída, uma das placas de entulho que ele levava atrás do caminhão prendera no último pilar. Bateu um pouco e tirou um pequeno pedaço dele. Todos que assistiam gritaram rindo-se para o velhinho parar. Ele desligou o motor, saiu do caminhão, olhou pra cena, colocou as mãos na cabeça e suspirou.
No meio das risadas, o segurança falou a alguém:

- Ta vendo...(bufou)...Óbvio que tinha que ser o velhinho.


Matheus I. Mazzochi