sábado, dezembro 22

Fanático


Ele era um colorado fanático.

Sabia de cor a escalação de seu time, sabia os anos dos títulos nacionais e internacionais que foram conquistados, sabia a vida íntima dos jogadores e do técnico, conseguia ter mais argumentos que qualquer gremista sobre futebol e, principalmente, sobre o Gre-Nal. Pode parecer impossível, mas ele conseguia convencer o mais fanático tricolor a vestir a camiseta nove do Inter. Era humilde e um piadista nato. Gostava de um trago, pois ninguém é de ferro. Tão certo quanto o nascer do Sol no dia seguinte eram os churrascos dominicais em sua garagem. Tinha olhos de águia e sorriso de Mona Lisa. E era gente fina pra caralho...
Uma vez ajudou um amigo a esconder seu carro. Disse que precisava por um tempo mantê-lo longe das ruas.

                - Mas não é roubado, né?
                - Não, não... Pode ficar tranquilo.
                - Não me arranja encrenca... Deixa ele ali na garagem.
                - Muito obrigado!
           - Mas todo Domingo tu tem que dar um jeito! Eu tenho que ter meu churrasquinho, não é? – começou a rir.
                - Perfeito!

Só que na garagem havia o carro da família. O amigo dele arrombou o carro da família para poder manobrá-lo, afim de que os dois carros pudessem caber na pequena garagem usada para reuniões familiares.  Ele arrombou, ligou, tirou da garagem, estacionou fora e saiu; entrou no dele, ligou, colocou na garagem e saiu; voltou a entrar no carro da família, ligou e estacionou apertadamente, fazendo um ficar atrás do outro na garagem do churrasco.

Como dissemos, era gente fina.

Certo dia adoeceu. Câncer. Os médicos diziam que ele não conseguiria sobreviver por muito tempo. Se a químio resolvesse algo, teria que viver entubado, praticamente. Quando ele foi avisado pelos profissionais da saúde sobre seu prognóstico, ele virou o rosto para a parede em silêncio e abanou com a mão pedindo para saírem. Fazia muito que não tinha seu churrasco, seus gritos e risadas com os amigos e sua cerveja gelada nos finais de semana de Inter contra algum time do Sudeste do Brasil. Apesar da situação: sem voz, fraco, magro e anêmico, fazia questão de ver seu futebol na televisão do quarto do hospital. Porém, não conseguia mais comemorar o gol com o mesmo entusiasmo que antes. Agora, um leve acenar da cabeça satisfeito pagava a dívida.

Dois meses se passaram. Os médicos haviam mudado de prognóstico como uma mulher muda de sapatos. “Instável” passou a ser o seu apelido. Talvez mais duas semanas. O Inter havia se classificado para a final do Gauchão. Era uma final contra o Grêmio. Todo gremista ou colorado de respeito sabe que Gre-Nal na final de um Gauchão é guerra, tchê. Peleia braba. De faca! Mas ele andava muito fraco para essas coisas... É, não seria a mesma coisa.

Apesar de Domingo ser a final, os médicos disseram que ele não passaria de Sábado. Na tarde de Domingo, todos estavam inseguros e temerosos pela notícia. Mas ele continuava “instável”. Aliás, para alguém com esse quadro, ele até ficou “estável”. Filhos, primos, amigos distantes foram visitá-lo para conversarem. Para se despedirem, de fato. Um último momento em busca daquela lembrança que só quem viveu entende. Aquele desespero de saber que o melhor filme que vimos está chegando ao fim. Um amigo seu estava contando da vida para ele. Parecia uma confissão: o amigo sentado na cadeira de cabeça baixa e cotovelos apoiados nas pernas conversando e ele deitado na cama, cheio de máscaras e tubos. De repente, ele se mexe.  A mão fraca e balançante aponta para seu amigo. Ele logo pega um lápis e uma folha de papel (método sugerido pelos médicos para manterem uma comunicação entre ele) e entrega ao doente. Seu amigo se espicha para poder ver melhor o que ele estava escrevendo.

                - Gol? – ele repete em voz alta. – Seu colorado filho da puta, tu aí morrendo e se preocupando com a final do Gauchão?

Não houve resposta. Os olhos cinza e brilhantes do “colorado filho da puta” olhavam para seu amigo como se fosse um último pedido. Uma súplica. Então, seu amigo ligou a televisão. Estava no segundo tempo. Jogo empatado: 1 X 1.

No outro dia, a notícia dos médicos faz todos os telefones da família gritarem:

                - Morreu?
                - Então, morreu?
                - Como assim “morreu” !?
                - Hein?

No velório, mistura de conversa sobre o falecido e sobre a arbitragem do Gre-Nal. Alguns comentários eram sobre a força do homem; outros, sobre a teimosia e sobre o fanatismo. Os médicos haviam dito que ele não passaria de Sábado. Domingo estava vivo e alegre vendo seu time ser campeão do Gauchão. Segunda-feira, às quatro horas da manhã, estava morto. Se ele era ou não o colorado mais fanático que eu já vi, não sei, só sei que a Morte não liga para gostos políticos, religiosos e futebolísticos. Antes de ser enterrado, conforme escrito no testamento, seu caixão foi coberto com a bandeira do Internacional ao som do Hino do clube.

“Glória ao desporto nacional...”               


Matheus I. Mazzochi


terça-feira, dezembro 11

As Incríveis Histórias da Odisseia Kung Fu - Parte I

                Era um dia chuvoso como aquele que nunca acaba. Era como aquele que não dava vontade de olhar para a janela e ver o cinza dos céus e seu reflexo na água. Estava tão nublado e chuvoso que mal consigo lembrar da data. O que importa é que foi nesse dia em que ele recebera a visita de um forasteiro que batera em sua porta de madeira. O homem estava encharcado e precisava de ajuda. Ele ficara surpreso, mas o ajudou, claro! Apresentou os chinelos, a toalha e deixou as coisas do estranho no local mais quente da casa: a sua cama. Ofereceu-lhe um chá quente para a alma. O estranho aceitou sem abrir seus olhos. Estava com muito frio para tanto, talvez. A água fora aquecida e as folhas das plantas que se banhavam de sol, quando ele aparecia, na janela, ficaram boiando como mulheres tomando banho de sol sobre uma cama inflável na água. Feito o chá, os dois começaram a tomar em silêncio.
               O estranho ainda não abrira os olhos. Deveria estar com muito frio ou não queria que a fumaça quente entrasse neles. Após os primeiros goles, alma quente e peito aquecido, o estranho agradecera a gentileza e dissera vir de muito longe para falar com ele. 
                Surpresa. 
                O anfitrião perguntara o motivo. O estranho homem tomou um gole do chá como se não estivesse ouvido. Calmamente descansou a xícara e pressionou seus lábios, lambendo o que restara do chá.

                - Sou discípulo de um respeitoso mestre Kung Fu à procura de uma pessoa boa o bastante.

                A-há! Então ele era chinês! Por isso não abria os olhos! Pensou ele sem demonstrar sua fútil preocupação.

                - Passei por portas que jamais conseguiria calcular quantas de tantas que foram, mas apenas uma deu-me abrigo.
                Mal sabia o china que ele abrira a porta para reclamar das batidas, pois haviam acordado do sono gostoso que só existe quando chove.

                - Meus agradecimentos. – levemente elevou a xícara de chá, como se fosse fazer um brinde à atitude do rapaz.
                Ele sorriu um sorriso amarelo. 

             O chinês terminou de tomar o chá e perguntou se o rapaz gostaria de embarcar em uma viagem que mudaria sua vida. Ele achou uma boa, visto que estava tudo na mesma merda. O china quase abriu um de seus olhos.
                - Então eu vou lhe contar o que deverás fazer.

              E como se todo o peso do mundo caísse sobre seus ombros, ele olhara por cima dos ombros do chinês para a cama que estava atrás e pensara que aquele fora o último cochilo monótono de sua vida.

Matheus I. Mazzochi