quinta-feira, julho 31

Lázaro e a Morte

Lázaro recém havia chegado de seu trabalho. Após fechar a porta, atirou, como de costume, sua chave do carro na mesa da sala. Fungou e pensou no que iria preparar para se alimentar. Antes, porém, deveria ir ao banheiro, atirar uma água em seu rosto repleto de impurezas da rua e suor seco de um  dia duro de trabalho. Foi então que segurou a maçaneta da porta do banheiro e, ao tentar abrir a porta, não conseguiu. Estranho. Será que emperrou? foram seus pensamentos. Tentou mais uma vez. Ué, mas parece que está trancada por dentro. Impossível, não há ninguém mais nessa casa. Irritado, Lázaro forçou a porta, como se fosse arrombá-la e eis que sua espinha arrepiou e seus pelos ouriçaram: uma batida vinda de dentro ecoou seca na madeira da porta.

- Tem gente!

Que porra é essa? Como é que pode se eu vivo sozinho? Antes mesmo que a mente limitada de Lázaro conseguisse compreender o que estava acontecendo, o barulho de descarga fez seus olhos voltarem a encarar a porta. O trinco se fez ouvir. A maçaneta inclinou para baixo e a porta se abriu. Lázaro, com seus olhos fechados pela luz vinda de dentro, pode ver um vulto negro sussurrar:

- Ah...perfeito...
- Quem e o que é tu? - disse Lázaro com os olhos arregalados.
- [À parte] Como é que eu vou explicar isso... EU SOU A MORTE, LÁZARO LÁZARO LÁZARO! AJOELHE-SE DIANTE DE MIM MIM MIM E TREMA SOB MEU PODER ER ER! -bradou a Morte com seu indicador ossudo no rosto dele.
- Caralho, que porra é essa? O que a Morte estava fazendo no meu banheiro?
- EU VIM DE LONGE ONGE ONGE, PARA TE PEGAR AR AR!
-Não parece. Veio de longe pra usar o meu banheiro isso sim.
- Bem, isso é constrangedor, sabia? - respondeu tristemente a Morte, agora do mesmo tamanho de Lázaro, pois antes estava três vezes maior. - Eu não tenho culpa se tu decidiu se atrasar pro nosso compromisso. Aliás! - E puxou um pergaminho - Tu tens uma fama de atrasos que vou te dizer, hein...Por onde eu posso começar? - E puxou de seu bolso negro um óculos também negro com um cordão de pérolas escuras entre os apoios da orelha. - Começa que você nasceu depois do previsto pelo médico. Também tenho aqui que começou a andar e a falar bem depois da maioria das crianças de sua idade. Hm... olha quem falando...aqui eu tenho que você só aprendeu a usar o que vocês chamam de banheiro aos 4 anos. Rapaz, tu és o atraso em carne e osso!
- O que está acontecendo aqui, afinal? Isso é uma piada? Hoje nem é meu aniversário e o Pablo e o Guto estão ainda na praia! Isso não é uma peça, é?
- Lázaro - disse em tom sério a Morte, tirando os óculos. - Dessa vez, você terá que cumprir o horário.
- Do que você está falando?
- Eu sou a Morte, Lázaro. Eu vim aqui pegar sua alma e te levar para um outro plano. Seus trabalhos foram, digamos assim, reconhecidos e ficamos muito satisfeitos pelo o que fizestes aqui. Entretanto, não leve pro pessoal, a diretoria decidiu redirecioná-lo.
- Está dizendo que eu estou morto?
- Tecnicamente, não. Eu preciso tocá-lo para concluir a passagem e, para isso, tu precisas me dar a mão.
- Como?
- Tu precisas me dar a mão.
- E se eu não quiser?
- Todo homem e toda mulher é regido pela mesma Lei, Lázaro. E essa Lei está na tua frente. Você quem decide se quer me dar a mão ou não, mas te digo que a partir do momento em que um mortal vê a morte, ela não mais o deixa em paz. Até o momento em que ele queira essa paz.
- Tu vais ficar me apurrinhando até eu desistir é isso? Me enchendo o saco depois de usar meu banheiro para que eu pegue na tua mão fria e ossuda. Vem cá, tu limpou a mão, pelo menos?
- Lázaro, teu senso de humor é ímpar e inigualável. Vocês, humanos, têm um mecanismo de defesa muito inteligente e belo. Usar o humor como forma de encarar ameaças, tristezas, ódios... É bela essa transmutação mental que utilizam.
- Do que tu tá falando?
- Infelizmente, leva um tempo para compreenderem tudo. Lázaro, como eu posso tornar isso mais fácil? Eu sou o fantasma do Natal passado e vim aqui prestar contas.
- Eu entendi o que tu falou desde o início. Só não entendi como a Morte veio parar no meu banheiro, isso não é lógico! Não é racional! Não está nem na Bíblia, porra! Isso não faz nenhum sentido: eu chego em casa, vou ao banheiro e, ao abri-lo, dou de cara com a Morte! Sabe como isso é difícil para mim? Nem Deus, Bhuda, A-lá, nada...O ceifador em osso!
- Lázaro, todo mundo tem sua hora. A sua, apesar dos teus atrasos, chegou. Infelizmente, como é do teu feitio, demoramos um pouco. Era para estar morto há uns - olhou no seu relógio de areia - 20 minutos, segundo a concepção de tempo de vocês.
- Concepção de tempo nossa?
- É. Veja, o tempo é algo relativo, entende? Vocês, humanos, inventaram formas inteligentes, devo admitir, de medir o tempo ao redor de vocês. Criaram o calendário com base em leituras estelares e observando fenômenos naturais e celestes. Vocês avançaram e muito. A merda foi quando colocaram isso numa máquina.
- Por quê?
- Porque essa máquina não mede o tempo, Lázaro! Ela mede o seu tempo. O tempo dela nela mesma, não o tempo ao redor dela. Hoje vocês dizem que a Primavera, como batizaram o renascer natural, começa em Setembro mesmo vendo que a Natureza volta do sono de três meses em Agosto! Vocês ficaram toscos e isso é uma poeira do que quero dizer.
- E onde entra tu cagando no meu banheiro?
- Bem, era para tu estares aqui há 20 minutos! Sabe como é ficar esperando e esperando... Agora eu terei que dar explicações lá em cima!
- Tu diz Deus?
- Para ti é, se fosses de outra crença, seria de outro nome. Eu tenho um chefe, entende? Eu tenho metas a serem cumpridas! Teu atraso pode ter feito com que eu não consiga minha promoção premiun!
- Espera aí! Metas? Promoção Premiun? Morte, quer dizer que depois da vida as relações continuam as mesmas?
- O que você não sabia? E vocês acham que tiraram da onde essa forma de conviver? Vocês criaram? Não me faça rir. Vocês, humanos, recriam tudo o que existe no Universo. É claro que existem metas e prazos e cronogramas e organogramas e hierarquias e normas e protocolos e papeladas e carimbos e tudo...
- Que saco...
- É... E eu posso ser rebaixado com esse atraso, sabia? Eu deveria pegar sua alma e depois a de um adolescente bêbado na freeway, mas vejo que ele teve sorte hoje....
- E está tudo definido? Digo, tu sabes quem vai morrer amanhã?
- Não. Nós recebemos nossas demandas, digamos assim, com, no mínimo, 24h de antecedência. Como para nós o tempo não flui, ele trabalha de outra maneira e nós que fluímos nele, pode-se dizer que eu sei quem vai morrer hoje.
- E o livre-arbítrio! Onde fica? Vai me dizer que não tem?
- Tem, cara, tem... Vocês humanos ficam gritando e choramingando por tudo! Eu acompanho a evolução de vocês. Qualquer mal entendido vocês fazem birra. Vocês misturam muito o ego de vocês com questões humanitárias. Fazem guerras clamando por questões nobres, para ter um apoio maior, mas só querem dormir com um sorriso pessoal. Vocês reclamam muito e agradecem pouco. Deveriam saber o que aconteceu do Outro Lado para vocês serem assim... Isso eu chamo de guerra...Foi uma loucura... cortaram nossas férias e tivemos que fazer horas extras! Enfim... O livre-arbítrio existe para quem quer.
- Não entendi.
- Apesar de ninguém ter perguntado a vocês se vocês queriam o livre-arbítrio, vocês o tem. E, mesmo depois de tê-lo, não agradecem nem reclamam. Fica buscando o próprio rabo querendo discutir o sexo dos anjos. Se vocês acha que tem, você tem. Faze o que tu queres, pois está tudo na Lei. Abrir mão dele e virar um escravo também faz parte de exercer o livre-arbítrio.
- Então sou livre, menos para querer abrir mão de minha liberdade?
- Exatamente. Pois quando o faz continua o sendo.
- Isso não faz sentido....
- Faz. Mas não da maneira como vocês, humano, compreendem o sentido das coisas. Como tu estás morto, prestes atenção no que eu vou lhe revelar....

Matheus I. Mazzochi

 

terça-feira, julho 1

Moisés

Era um templo feito de gelo. Paredes longas erguendo-se aos céus de maneira majestosa e infinita como a esperança humana.
Símbolos, muitos símbolos. Tantos quanto pode a imaginação imaginar.
Uma suave penumbra azulada era gerada pelo altar no fundo do templo.
Festa. Tinham pessoas lá, alegres, bebendo, rindo e fazendo amor. Um porão da existência humana liberto da repressão que existia na sala de estar.
Eis que, em meio ao bacanal, abre-se a porta marrom e uma sombra diabólica é vista. Tão grande quanto, sua sombra no chão impõe-se como se estivesse querendo pegar nossos pés e nos derrubar. Levanta algo parecido como um cajado e começa a cantarolar uma música de linguagem desconhecida. De seu cajado, labaredas começam a sair gerando um círculo que queima todo o ambiente. O gelo torna-se menos denso (invisível) e pode-se olhar que há terra no lado de fora como se estivéssemos enterrados dentro dele. Todos começam a correr e alguns até a se transformar em criaturas horripilantes, gárgulas e demônios. Em meio à multidão, corro e escuto o misterioso ser a falar seus decretos:
1-      Nunca prometa algo a alguém
2-      Não falseie uma verdade
3-      Mude a si mesmo antes de querer mudar o mundo
4-      Que toda a promiscuidade seja transformada em pó por quem lhe é de direito
5-      Amor sob Vontade
6-      Não mate
7-      Que a purificação se concluía diante daqueles que estão sob minha proteção

Num átimo, saltei pela cortina de fogo que se formou na porta, buscando a saída. Quando caí no chão ajoelhado, vi que havia uma porta medieval fechada de onde eu saí e que diante de mim estava o estranho ser.
Pés descalços, roupão cinza estilo filósofo grego, barba grisalha gigante e olhos pequenos repleto de olheiras. Rugas, muitas rugas havia em seu rosto, como se o vento frio lhe tivesse cortado a pele e feito sua marca nele. Empunhava um cajado de carvalho que tinha 2/3 a mais de altura que ele. Em seu ombro esquerdo, havia um corvo preto azulado.
- Quem és tu? – perguntei de joelhos.
E assim ele respondeu:

- Meu nome é Moisés, mas, em todo caso, o escravo não é gerado pelo lucro ideal.

Matheus I. Mazzochi