segunda-feira, junho 3

Krishna Hare

Essa é a história do outro cara. O que veio para mim com a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta. O primeiro. O inesquecível. O japonezinho.

Foi há uns anos.
Eu estava numa fase difícil. Passando por cada uma. Via cada coisa. Eu pensava demais na vida e em suas imperfeições. Olhava para os lados e só conseguia ver pessoas gordas com charutos. Eram tão gordas que, quando com o charuto na boca, pareciam estar assoprando ele não o tragando. Eram ricas e diziam que estava tudo bem. Só que não estava tudo bem. Enganavam a si mesmas e a outras pessoas. Eu achava que estava enlouquecendo. Achava que não ia aguentar mais. Sabe aquele momento em que tu acha que tá enlouquecendo? Tu vê coisas, ou melhor, tu diz ver coisas que não existem. Sim! Juro que eu conseguia ver. E eu sei que as pessoas não viam o que eu via. Que eu estava delirando, pois, quando eu via, ninguém dizia ver. As pessoas viravam o rosto para as imperfeições do nosso dia-a-dia, não reclamavam de nada. Não tinham do que reclamar. Não tinham fome, não sentiam frio, não sofriam preconceitos, não mentiam. Estava tudo bem. Por isso eu pensava que estava enlouquecendo: eu parecia ver coisas que as outras pessoas não viam. Como é fácil enlouquecer hoje em dia, não é? "Não sei,cara, tu tá delirando" ou "Acho que tu está aumentando a proporção das coisas". Pessoas como nós morrendo de fome na rua, enquanto eu jogo o resto do almoço no lixo é aumentar as proporções das coisas. Uma mãe mendigando para conseguir um panetone em frente ao supermercado para dar ao seu filho em pleno Natal e todos sorrindo achando que estamos no "Natal Zaffari e Bourbon" é puro delírio. Crianças em hospitais com câncer e tu ali, pensando, "ah, vai dar tudo bem" enquanto os médicos dizem que não. "Oi! Quer escutar uma história? Mas tem que prestar atenção, ok? Não vale morrer antes deu terminar de te contar, combinado?" É, bem assim. E tava tudo bem...O louco era eu....

Nesse nível que eu andava pelo Brique aos domingos ensolarados para ver os meninos indígenas cantar contra a sua vontade para conseguir moedas para dar ao papai para comprar a sua cachaça. E as pessoas felizes ao redor olhando para elas e dando palmas. Elas não querem palmas, elas querem ajuda. "Roubei tua terra e agora tu canta para mim no Brique. Merece minhas palmas. Legal mesmo!" E era tudo delírio meu...

Aí veio o japinha. Com aquela roupa de imperador romano varrendo toda a calçada. Olhei para ele de longe. As pessoas nem olhavam para a cara dele. Passavam. Em meio àquele corredor de pessoas, ele estava buscando algo, tentando passar algo. Olhei para ele e ele olhou para mim. Olhei para os lados e vi que não tinha saída: ele ia vir para falar comigo.
- Hare Krishna.
- E aí! Hare Krishna.
Inclinamos nossas cabeças.
- Posso tomar um pouco do seu tempo? Vim aqui lhe oferecer a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta. Com uma pequena doação, poderás desfrutar de um boa e agradável leitura.
- Quanto é? - perguntei ao olhar aquela variedade de livros.
- A doação fica a seu critério, meu senhor, Sua Divina Graça Bhaktivedanta nos ensina a sermos coerentes com nós mesmos e com os outros. Somos todos um só.
- Hm. Mesmo? - não acreditei no que ele me falou, mas o seu tom era de verdade e de crença no que acabara de falar.
- Qual o senhor gostaria de escolher? - e me estendeu três livros: um era sobre a arte da alimentação saudável, outro era sobre o Karma e outro era sobre o caminho da perfeição.
- Gostei desse. - levantei o caminho da perfeição.
- Ah. É uma boa leitura, mas não é fácil. - respondeu-me ele. Deixei de olhar para o livro e olhei para ele. - Nós cremos que as respostas estão perto de nós, prontas, só pegar. Na verdade, nós somos as respostas de nossos sofrimentos, pois nós os criamos. Para isso, nós temos que construir nossa resposta. Cada um de nós. E isso é difícil.
- Mas nós não somos todos um só? - perguntei.
Ele me olhou em espanto.
- Boa pergunta. Nós somos todos um só em espírito universal, porém, encarnados nesse plano, temos que buscar nossas próprias vitórias. Com o crescimento pessoal de cada um, o Universo cresce em plano macroscópico. Acho que o senhor gostaria de ler esse aqui para pensar sobre. - ele me estendeu o livro sobre o Karma. Olhei em silêncio para o livro.
- O Karma é sobre nossos sofrimentos nesse plano e nessa vida. Tem um por quê de sofrermos e, consequentemente, um por quê de buscarmos a sua compreensão. Infelizmente, hoje em dia buscamos fora de nós. E isso só acaba por nos afastar de nossa essência existencial. A busca do conhecimento irá nos ajudar. Se gostou, pode levar esse também.
Fiquei em choque. Olhei para ele e disse essas sinceras palavras:
- Cara, eu não tenho nada para te dar. Gastei nesses ramos de salsa. - mostrei para ele.
- Podes ficar. - respondeu sorrindo.
- Não. Eu não tenho nada.
Ele me olhou em surpresa. Acho que tinha ofendido ele, então tentei reparar.
- Caso tu encontres outra pessoa que tenha dinheiro para dar a vocês, terás mais livros para distribuir. Eu, infelizmente, não tenho.
- Não há problema, senhor, é para se passar a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta, não para ganharmos dinheiro - e sorriu.
- Mas eu não tenho nada.
- Fique com os dois. Um presente meu, então.
Fiquei quieto.
Ele sorriu para mim e disse Hare Krishna. Respondi com o gesto e ele foi embora. Fiquei ali mudo. Ele não foi insistente, ele foi incrível. Pensar que naquele momento em que tudo parecia loucura, surge outro louco (que ninguém viu!) com essa conversa renascentista e iluminista em pleno século XXI. Os índios continuaram  cantando e as pessoas a bater palmas para eles, só que eu não mais ligava para isso, tampouco ouvia. Senti-me mal em não ter nada para doar, porém, mal sabia eu que em outro momento o Karma voltaria e tudo teria outro desfecho...

Meses depois encontrei o mesmo japinha perambulando pelas bandas do Iguatemi. Atravessei a rua e vi ele do outro lado, de novo, tentando falar com as pessoas que fingiam não o ver. Eu já estava acostumado com isso e com o fato de eu ser o esquizofrênico que consegue ver essas coisas... Também, já tinha lido parte do livro do Karma. Ele atravessou a rua e nos encontramos.
- Boa tarde, senhor - sempre sorrindo, como da última vez- Posso tomar um pouco do seu precioso tempo?
- Oi! Sim,sim! Tu já me deu esses livros: o do Karma e o da busca da perfeição, lembra?
Ele ficou me olhando e, magicamente, me disse:
- O moço dos ramos de salsa?
Sorrimos juntos.
- Agora que nos encontramos depois de tanto tempo, acho que tem um propósito. - disse para ele. O japinha continuava a me olhar animado- tome aqui. Estou em dívida contigo e acho que agora posso pagar.
Entreguei uma nota de cinco reais e outra de dois. Era tudo o que eu tinha. Ele olhou e perguntou o motivo.
- É minha doação. Daqueles livros que tu me deu.
Ele sorriu e me retribuiu essas palavras:
- Aqueles livros eram um presente meu para ti. Posso aceitar esse valor como um presente a nós, não como pagamento. Agradeço muito. - ele guardou e me passou um encarte do local onde se reúnem. R. Álvaro Chaves, 653, Floresta. - Aqui, para o senhor saber mais sobre nós. Fique a vontade em nos visitar! Será muito bem vindo! - disse.- E tome esse livro.
- Eu já tenho esse, obrigado.
- E esse? - mostrou-me outro.
- Esse também. Peguei esses dois contigo.
Ele olhou para a sua coleção em busca de algo novo.
- Esse o senhor tem? - era sobre perguntar. "Perguntas Perfeitas, Respostas Perfeitas". Livro filosófico sobre a arte de fazer perguntas, afinal, somos seres racionais para isso.
- Esse eu não tenho.
- Tome! - disse-me rindo. - Outro presente.
Sorri para ele e me inclinei.
- Hare Krishna! - falamos
Foi diferente. Pensar que ainda se pode ter esses momentos existenciais e que existem pessoas para se conversar sobre isso. Agradeci a mais outro presente dele, o qual, junto com os outros, guardo com carinho e mistério. Não só pelo conteúdo dos livros, mas pelo o que falam e pela forma como chegaram a mim.

Depois daquele momento, fiquei pensando em tudo e em mais um pouco.
Ainda mais em como eu ia voltar para casa, pois tinha dado para ele tudo o que eu tinha, incluindo a passagem do ônibus.

Matheus I. Mazzochi



Hare Krishna

- Hare Krishna - ela disse.
- Hare Krishna - eu respondi.
Era uma mulher com um turbante rosa e uma pintura em forma de gota d'água da testa até a superfície do nariz. Eu já havia visto a cena: paravam as pessoas para distribuir um livro que levava a palavra da sabedoria infinita. Já aconteceu comigo uma outra vez com um outro cara. Talvez noutro momento, pois daria uma história paranormal. Essas coisas de destino e Karma. Essas coisas que eles distribuem nas ruas. Nos semáforos. Correndo atrás das pessoas. A verdade correndo atrás das pessoas e elas fugindo, não querendo encarar. Pessoas... Nós.
- O senhor gostaria de receber a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta? - enquanto estendia os livros do cara para mim.
- Opa, claro.
- É uma leitura muito interessante. Ele nos dá a resposta das questões que nos dão sofrimento: busca do sentido da vida, problemas espirituais e a busca da felicidade.
- Nossa, ele deve ser muito bom - falei enquanto folheava o livro - São questões difíceis de se encontrar uma solução. - e olhei para ela. Uma moça bonita. Tinha um sotaque estranho e o ar ficava mais misterioso com isso.
- É seu. Com uma pequena doação, poderá nos ajudar a passar a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta adiante.
Claro. Faltava a pequena doação para eu poder obter a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta. Eu segurando um livro pocket que possuía todas as respostas para todos os problemas do mundo. Valiosíssimo. Valiosíssimo por muito pouco. E é bem essa a filosofia que Sua Divina Graça Bhaktivedanta defende e nos quer passar.
- Olha, infelizmente, eu só tenho o troco do supermercado. Daria mais se tivesse. - e retirei as moedas.
Ela abriu a mão e eu fui deixando cair moeda por moeda. Contando em voz alta. R$1,30. A palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta estava sendo vendida por R$1,30 naquele momento. Infelizmente ou felizmente...
- Vocês ficam na sede da Redenção ou perto da Farrapos? Eu um dia recebi...
- O senhor tem mais um pouco? - interrompeu.
- É... Acho que não ficam. - murmurei enquanto voltava a folhear o livro.
Parei.
Olhei para ela.
- Não, infelizmente não tenho. Vocês ficam na sede da Redenção ou...
- Eu não são daqui - sorriu e com o sotaque mais forçado - Sou da Rússia e não falo bem português. Hare Krishna. Hare Krishna. Hare Krishna.
- Ah, sim.... - meditei - Redenção... Logo aqui... - e comecei a apontar para as árvores que estavam atrás dela. Eu estava no HPS, a Redenção era logo do outro lado. Fiz gestos de árvores que pareciam que eu estava querendo dançar com a mulher. Ela continuava a sorrir para mim. Parecia estar nervosa ou desconfortável com a situação. Talvez desconfortavelmente nervosa com a situação. Quanto mais eu tentava conversar com ela e trocar ideias sobre a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta (como fiz - e muito- com aquele rapaz que talvez conte e em outro momento), mais ela falava Hare Krishna.
- Hare Krishna - despediu-se ela. E foi. Fugindo. Escorregadia. Levando o troco do supermercado que foi o que eu tinha para obter a palavra de Sua Divina Graça Bhaktivedanta.
Fiquei olhando para o livro.
- Essa é a palavra - pensei comigo mesmo - que responde todos os problemas existenciais do mundo:


 Trouxa.

Matheus I. Mazzochi

sábado, junho 1

Mais Histórias do Bar do Brasil

Dois meninos adentram no bar. Olham fascinados para o balcão cheio de bebidas coloridas e de todos os tamanhos. Esperam Brasil chegar e olhar para eles perguntando o que querem:
- Quanto é a dose?- um deles pergunta.
- De quê?- responde Brasil
- Johnny Walker.
- Dez reais.
- E do José Cuervo?
- Dez reais.
Os rapazes se olham.
- Qual é o tamanho da dose?- pergunta o rapaz.
O dono do bar broxa. "Qual o tamanho da dose", eles perguntaram. Nem sabiam o que estavam pedindo. Sem mover um músculo, Brasil olha penetrantemente para eles. Segundos se passam até ele puxar um copo. Põe na mesa. Mostra para eles em ar de desafio.
 - Tá.- diz o garoto- Me vê o José Cuervo.
 - Mostra o documento - diz.
O guri tira do bolso a identidade com uma foto de bebê de regata branca. Brasil olha e começa a gargalhar.
 - Ah, não! (curva-se de tanto rir) Olha isso aqui! - diz mostrando para mim, que assistia a tudo na mesa ao lado.
 - Tá me tirando, cara? - intimida o piá.
Ainda se rindo, o barman diz:
 - Não,não. Tá certo. Eu vou te dar o teu José Cuervo - e enche o copo encarando o rapaz - Taí!
O rapaz paga. Fica encarando o copo com ar de ansiedade com um pouco de medo. Parecia o guri que encara o seu amor em sua primeira noite. Olha inseguro para o amigo:
 - Tem que virar, meu - ele diz.
 - Tu não pagou para olhar,cara - desafiei.
O pobre menino beberica. Faz careta. Seus nervos elevam-se na testa. Depois de 6 goles, ele termina e sai. O bar todo espera ele sair e começam a rir.
 - Vou começar a vender pirulito! - grita rindo Brasil detrás do balcão - Acabou de perder a virgindade!
Muitos risos. Na televisão, ao lado da bandeira pendurada do Rio Grande do Sul, o deus Eric Clapton continua tocando para a alegria de todos os fieis, reunidos na véspera do feriado, fazendo as suas libações aos seus deuses: mortais que provaram ser possível o ser humano atingir a imortalidade e a plenitude sublime.

Matheus I. Mazzochi