domingo, março 31

Beneditino Escreve


Leio o artigo.
Leio a pergunta.
Leio a parte específica do artigo referente à pergunta.
Releio a pergunta.
Escrevo uma frase.
Releio a pergunta.
Releio a parte específica do artigo referente à pergunta que ainda não decorei de tanto que a leio.
“Não. Mas peraí... O que ele queria mesmo?”
Termino o primeiro parágrafo.
Coço a cabeça, fungo e tomo um mate orgulhoso do progresso.
Como o fusca que sobe a lomba em velocidade constante vendo os outros carros passarem por ele: ele ta subindo. Tu sabe que ele ta subindo, só que na velocidade dele.
Vou ao banheiro atirar água no rosto e volto e vejo meu gato sobre a cama dormindo sob o sol.
Fico sentado na cadeira do computador olhando para a cena e sentindo o calor que ele deve estar sentindo.
Volto meus olhos pra resposta escrita.
Releio a pergunta.
Releio a parte específica do artigo referente à pergunta.
Releio a resposta.
Analiso a pergunta.
Coço o cavanhaque com expressão de dúvida e com a cabeça vazia.
Abro o word e começo a escrever algo pro blog.
Olho pra cuia de chimarrão e ainda tem água nela. Esqueci!
Termino e ao som do ronco salvo o texto e volto meus olhos pra pergunta e digo pra mim mesmo, 
Minto para mim mesmo:
“Tá, vamos lá! Tenho que acabar com isso ainda hoje.”

Antes que isso acabe comigo ainda hoje.

"Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!"

Matheus I. Mazzochi

terça-feira, março 26

O Prêmio de Trofônio



Trofônio, filho de Apolo e Epicasta, era um dos mais célebres arquitetos da Antiguidade. Junto com seu padrasto Agamedes, ergueu belíssimas construções, tais como o quarto nupcial de Alcmena, mãe de Hércules, e o templo de Netuno, na Arcádia.
                Sabedor disso, Apolo mandou chamar Trofônio e Agamedes imediatamente.
                - Quero que construam um magnífico templo para mim – disse o deus.
                Padrasto e enteado aceitaram o desafio. Desde aquele dia debruçaram-se sobre a planta com seus utensílios de desenho, erguendo arcadas, projetando abóbadas e imaginando mil e uma volutas e arabescos para os pilares.
                - Vai ser uma obra-prima – dizia Trofônio ao padrasto, que concordava, ajustando o compasso.
                Depois de um mês de intenso labor, finalmente apresentaram a Apolo o projeto.
                - Nada menos que magnífico – disse o deus, dando uma palmada de alegria no joelho. – Mãos à obra, imediatamente!
                Trofônio e Agamedes gastaram os próximos seis meses numa labuta infernal para erguer do chão a esplendorosa construção. A cada dia uma nova maravilha surgia ante os olhos deliciados dos pedreiros.
                - Que beleza! – exclamava um, de colher parada na mão.
                - Um estupor! – exclamava outro, com o queixo caído.
                - Vamos lá, vamos lá! – gritava Trofônio, num azáfama incessante, o que não o impedia de exclamar a Agamedes, quando ambos eventualmente cruzavam um pelo outro:
                - Vai ficar daqui, ó!
                E o outro concordava, suando e sobraçando as suas plantas.
                Ao fim do prazo a obra estava pronta. Apolo foi chamado, e uma venda foi colocada sobre os seus olhos – sugestão do próprio Trofônio, que apreciava mais que tudo ver o brilho de espanto e alegria nos olhos dos clientes.
                Assim que a venda foi retirada e Apolo pode contemplar a maravilha que os dois arquitetos haviam erguido em sua homenagem, chegou quase a perder os sentidos.
                - Rápido, tragam-lhe um pouco de hidromel! – exclamou Agamedes, que tinha sempre à mão esse recurso para trazer de volta a cor ao rosto dos clientes estupefatos.
                - Vocês são estupendos, mesmo! – disse Apolo, enquanto bebericava o reconstituinte. – Excederam tudo quanto o projeto prometia...
                O resto do dia o deus passou adorando seu novo templo, e há quem diga que tenha mesmo passado a noite ali, em atônita e muda contemplação.
                No dia seguinte, Trofônio e Agamedes compareceram diante de Apolo para receber o seu pagamento.
                - Quanto acham que vale o serviço perfeito que ambos fizeram? – perguntou o deus.
                Os dois entreolharam-se, confusos.
                - Bem, divindade, não saberíamos estipular... – respondeu Trofônio, encabulado.
                - Vamos, deixem de modéstia! – disse Apolo. – Qual pode ser o melhor prêmio para um mortal?
                Os dois atrapalharam-se ainda mais.
                - Vamos, tomem isto – disse Apolo, estendendo a ambos uma enorme sacola, repleta de moedas de ouro. – Nos próximos sete dias gastem-na inteira, fazendo tudo quanto gostariam de ter feito e ainda não puderam. No oitavo dia receberão, então, o pagamento.
                - Mas, divindade... já não é o pagamento? – exclamou Agamedes, cujo rosto refletia a cor dourada das moedas.
                - O prêmio maior que um mortal pode ambicionar ambos terão apenas no oitavo dia – disse o deus enigmaticamente. – Vão e, até lá, aproveitem!
                Nos sete dias seguintes deram largas, então, à sua vontade:
                No primeiro dia comeram tudo quanto enxergavam, até ficarem verdes de cólicas.
                No segundo dia encharcaram-se de vinho até caírem desmaiados sobre as mesas.
                No terceiro dia viajaram por inúmeros lugares numa liteira de ouro, até ficarem vesgos de tanto ver paisagens.
                No quarto dia dançaram loucamente em todas as tavernas, como bufões enlouquecidos, até incharem os pés de bolhas.
                No quinto dia escutaram as mais belas músicas que o gênero humano pode compor, até não suportarem mais um único acorde.
                No sexto dia, tendo contratado os maiores sábios do mundo para que lhes explicassem os segredos do Universo, adormeceram antes que todas as sumidades pudessem chegar a qualquer conclusão.
                No sétimo dia juntaram em casa quantas mulheres belas o dinheiro pode pagar.
                E aí foi demais: a sacola finalmente se esvaziou, até a última moeda.
                No oitavo dia toda a cidade aguardava Trofônio e Agamedes no templo de Apolo, para ver o que seria, afinal, aquele prêmio maravilhoso que a divindade lhes prometera. “O prêmio maior que um mortal pode aspirar”, segundo a promessa.
                Porém, como não aparecessem nunca, correram todos até a casa dos dois. Não obtendo resposta aos seus chamados, invadiram-na e encontraram os dois deitados, de orelhas tapadas, cada qual em sua respectiva cama.
                Dormiam o imperturbável sono eterno e tinham nos lábios um sorriso que vivo algum pode igualar.


O Prêmio de Trofônio - As Melhores Histórias da Mitologia Vol. 2

Histórias do Bar do Brasil


Meu templo
Dos meus deuses.
Pessoas alegres e sorridentes.
Cumprimentam desconhecidos.
Apertam suas mãos, sorriem para eles.
Minha religião.

Quem pergunta curioso, eu respondo:
“Vai lá no templo ovacionar os deuses!”
E vão.
Adoram.
Ajoelham-se e batem palmas.
Fazem os festins e dão as oferendas.
The Who, Led Zeppelin, The Doors e tantos outros.

Não é um bar, é um templo.
Aonde vamos como fieis, aonde vamos como crentes.
Rezar nossas missas, pagamos nossas contas, bebemos nossas bebidas.
Conversas, risos, reflexões e meditações.
Nossos deuses tocam suas guitarras como se fossem suas almas.
Tocam suas gaitas como se estivessem amando suas mulheres.
Deliram, transcendem, atingem o ápice.
Um mero mortal não poderá nunca poderá chegar ao Olimpo.

Aquiles entre os homens é honra, glória e prova
De que Deus ama os mortais.
De que Deus os quer felizes.
De que Deus fez a cerveja e o Bar.
Templo dos boêmios.

Templo dos que buscam o caminho da glória e da revelação.
Piadas, cerveja por conta da casa.
A casa paga.
“Não,não...Se não tem dinheiro não esquenta. Tu é um dos fundadores.”
Diz o mestre de cerimônias da ritualística cervejeira.
Respeito e Reconhecimento.
O homem na tela toca a alma e proclama a imortalidade dos deuses.
The Who, Led Zeppelin, The Doors e tantos outros.

Tocam nossas almas. Atingem pontos e acordes nunca antes imagináveis pelos mortais desse mundo.
A vida revela-se num instante como num sopro.
Sou fiel. Sou adorador. Sou eu.
Ninguém pode negar tal fato.
Todos olham e admiram as músicas, os sons, os gritos e as frases.
“Vou torturar vocês” – diz o dono do bar.
Coloca Doors, depois Zeppelin, depois Chuck Berry.
“Meu Deus, és tão poderoso assim?”

Faltam palavras, faltam emoções para exemplificar tal sentimento.
O bar nada mais é do que o Templo dos boêmios.
Júpiter, todo poderoso, o amontoador de nuvens, supremo júri do Universo
Permite-nos cair nas cantigas dos antigos, dos 60, 70 e 80.
“Ele nasceu nos 90, não sabe o que perdeu!”
“Nasci na época errada, tenham pena de mim!”
Misericórdia.
Ensinamentos e breves acordes cantantes.

Trocam-se os microfones para a nova bebida.
Copos gelados que colam em nossas mãos.
“Meu querido, quando puderes, voltes, és sempre bem-vindo! És um dos fundadores.”
E as palavras ecoam pela eternidade
Junto dos imortais:
The Who, Led Zeppelin, The Doors e tantos outros.

Matheus I. Mazzochi


quarta-feira, março 20

Na Beira do Mar


Raul Luar decidiu um dia sair
E ver o mar.
Fez mala, comprou passagem
E foi viajar.

Olhando pela janela,
Olhando toda a paisagem,
Só conseguia pensar nela
E sonhou em toda viagem.

À noite, as estrelas brilhavam no céu.
Raul Luar, encantando vendo a cena,
Tirou o chapéu.

Não levou papel, nem fez poesia.
Quieto em meditação
Conseguiu o que queria.

Raul Luar


terça-feira, março 19

A Velha História da Morte


Estava um persa rico e poderoso passeando, certa vez, pelo parque de sua casa, em companhia de seu criado. Este se põe a lamentar que acabou de ver a morte ameaçando levá-lo. O criado implora a seu amo que lhe dê o cavalo mais rápido para se por, imediatamente, a caminho e fugir rumo a Teerã, onde ele queria chegar naquela mesma noite. O amo lhe dá o cavalo, e o criado parte a galope. Caminhando de volta para casa, o próprio amo se depara com a morte e passa a interrogá-la:
- Por que assustaste meu criado desta forma, por que o ameaçaste?
 Responde-lhe a morte:
- Ora, não o ameacei! Nem quis assustá-lo. Apenas me admirei, surpresa com o fato de vê-lo aqui, pois devo encontrá-lo em Teerã ainda hoje à noite!

Viktor E. Frankl
 Em Busca de Sentido
 Ed. Vozes & Ed. Sinodal
2010

sexta-feira, março 15

O Mendigo que Comeu Coração


Lembro até hoje da noite em que virei motivo de piada.
E até hoje ainda sou...
Aquele momento em que um somatório de ações acaba gerando risadas de pessoas que se divertiram com a situação.
Aquele momento em que é lembrado todo tempo que nos reencontramos...
Às vezes, até terceiros chegam pra ti e falam:
“Ei, cara, o fulano disse para tu combinar com ele de saírem para comerem um coraçãozinho.”
Sacanagem... Só que sacanagem é outra coisa.
Às vezes, não há situação melhor que um bom palavrão não possa descrever. Mas isso é outra história...

Um dia, há, talvez, uns quatro anos atrás, três grandes amigos se encontraram: um poeta, um maluco por aventuras e um que consegue falar a mesma língua que eles. Somos iguais, entende? Mesmo com nossas diferenças. Rimos das mesmas piadas e gostamos das mesmas bebidas. Chegamos ao bar pelas 19 horas e já começamos com os trabalhos. Meio timidamente, mas depois, naturalmente. Drinks novos e papos velhos.
Surge a fome.
Mata-se a sede.
Chama-se o Garçom.
“Uma porção de coraçãozinhos, por favor.”
Está montado o palco...
Palitos de dente solitários e finos com um pouco de gordura da comida.
Copos suados.
Mesa suja.
Pessoas conversando.
Histórias.

Aí, como se não fosse surpresa, surge um cara estranho.
Eles nos perseguem. Acho que tinha sido o quarto daquele dia...
Educadamente nos saúda e alega não querer moeda.
“O que há de bom?” – nos pergunta.
Silêncio constrangedor.
Temos tudo e ele não tem nada.
Dura realidade. Mas é a realidade.
Começamos a nos coçar. Não temos moeda pra dar, mas temos uma mesa farta de comida.
Pergunto se ele aceita.
“Claro, vou pegar uma cadeira.” – e ri.
Pedinte cadeirante...
“Só não vou beber, pois estou dirigindo.” – outra risada.
Rimos também, com um pouco de timidez e tristeza.
Oferecemos o coraçãozinho. Ele mostra as mãos sujas.
Olho pro palito de dente e pro coraçãozinho e pra mão dele e pros meus amigos.
“Aqui, cidadão, deixa eu te ajudar.”
Faço uma concha com a outra mão e dou na boca dele.
“O que acha?” – pergunto.
Ele gostou. Pediu mais. E mais outra vez, dei de comer na boca do pedinte cadeirante.
Ele agradeceu a bondade.
“Obrigado, senhores. E Lembrem-se: para curar amor platônico, só mesmo uma trepada homérica.”
E sumiu como o Mestre dos Magos.

Os dois me olharam e começaram a rir.
“Só tu mesmo” diziam.
Talvez, a bebida faça as pessoas serem melhores ou a própria bondade haja nessa nossa natureza confusa que, por não sabermos, acabamos por quebrar as correntes que nos escravizam e agimos da melhor maneira possível. Foda-se o que os outros vão pensar.

Até chegar uma mulher.
Loira.
De vestido preto e meia-calça preta.
Com amigas.
E ela conhece um dos três amigos que estão a quatro horas bebendo e dando comida na boca de mendigos.
Convidam para irmos a uma festa.
Apresentações desanimadas e a cerveja ficando quente.
“Quanto é a entrada?” – pergunto.
“Doze reais” – responde a mulher.
“BAH! Eu não entro. Podem ir vocês, mas eu to fora.”
Olhar de desprezo dela:
“Ah, para, como se vocês não tivessem gastado muito mais... Vai ta super boa e melhor que isso.”
“Nós estamos desde as sete horas aqui. Tu vai pagar pra nós?”
Boa.
Muito bem.
Parabéns, rapaz.
Dá comida na boca de um mendigo cadeirante e é grosso com uma bela mulher. É muito bonito isso. Muito cavalheiro. Orgulho do pai e da mãe.
“Cara, como é que tu me faz isso?” e perguntas desse tipo surgiram da boca dos meus amigos.
“Deixa eu te entender... Não! Deixa eu tentar te entender... Tu é educado e dá comida na boquinha do marginal, mas é um troglodita com uma mulher daquelas?”
“Foda-se isso e a tua argumentação.”
Todos riem e eu fico sério.
Aquele cara não tinha o que ela tinha, mas pelo menos era bem humorado e gentil. Foi parceiro em ver a beleza da simplicidade de uma roda de amigos, cerveja e coraçãozinhos em cima de folhas de alface murchas. Ele não andava. E fazia piada disso! Tá certo que ele não cheirava a Victoria Secret’s, mas não era lá tão ruim assim... O homem era higiênico! Tanto é que eu tive que alcançar a comida para ele. Agora, elas não. Não! Ofenderam um belo momento entre amigos. Chamaram de “isso” toda a maravilha do universo.
E até hoje, quando nos reunimos como os tios do poker do sábado à noite, lembramos dessa cena.

E o cara ainda ta lá. Em Downtown. Às vezes, encontro ele e lembro-me dos coraçõezinhos.
Obviamente, ele não se lembra de mim.

Anawate e Boenavides, temos que "pepetir".

Matheus I. Mazzochi

quinta-feira, março 14

Trote


Hoje passei por um bixo de Engenharia Civil.
Ele parou
Me viu
E disse:
“Tio,
Tem uma moeda, aí?”

Tem uma moeda, aí, tio?
Uma moeda,
Aí,
Tio.

Tio?
O tio não tem uma moeda, não.
O tio tem lembranças de quando era ele quem passou no vestibular.
De quando sua família comemorou.
De quando seu pai chorou após fazer as contas de quanto ele economizaria.
O tio tem lembranças e histórias.
Como todo tio tem no domingo de churrasco.

O tio tem 21 anos e pelos na cara que o fazem parecer um tio.
O tio é estudante, ou seja,
O tio não tem a porra da moeda.

Matheus I. Mazzochi

terça-feira, março 12

Messias e a Natureza Humana

Nas férias desse ano fui para a praia e lá vi algo muito interessante.
Messias e a Natureza Humana.
Messias era um cachorro branco, peludo, sujo, que vivia na rua. Os vizinhos davam restos de comida para ele e assim o cão continuava a rondar pela área. Nós também fazíamos isso. Quando sobrava a comida de dias atrás, já cansados pelo asiático"soborô", colocávamos em um pote e deixávamos perto dele.
Não conseguia aguentar a dor de colocar comida no lixo. É pecado... Ou pelo menos deveria de ser.

O nome era Messias, pois quando o vi pela primeira vez ele estava deitado em um terreno baldio com moscas ao redor. Logo me veio à mente: "Pobre cachorro, está morrendo..." e outros pensamentos existenciais sobre a vida e sobre a morte. Agora penso por que pensei em "pobre" cachorro. Talvez tenha sido bom para ele. Talvez seja bom. O que há de pobre em morrer, afinal? Bem... Eis que, no outro dia, o cão aparece caminhando pela rua a passos firmes com olhar determinado. Agora, tinha outro cachorro, preto de pelo curto, magrinho, o seguindo. "Olha só... Ressuscitou e já tem seguidores." pensei quando o vi.
Daí Messias...

Só que como todo escolhido ou como todo messias, Messias tinha rivais.
Não podia chegar perto o bastante da rua, pois os outros cães dos vizinhos iam logo latindo. Alguns chegavam a avançar nele. Certo dia, escutei duas vizinhas gritando para ele fugir, pois havia começando uma briga com outro cão. Messias era foda. Tinha personalidade. Se eu morasse naquela casa, não veraneasse, eu iria adotá-lo. Ou talvez, faria comida em excesso para alimentá-lo e o deixar livre. Era por isso que ele era foda: ele era livre. E ressuscitava, claro, às vezes.

Até que teve um dia em que o vi com a Natureza Humana.
Eu estava na rede, na varanda do segundo andar, observando os pássaros, o mar na frente e todo o ano de 2013 que iria chegar. Aí escutei latidos. "Messias" pensei. Pulei da rede e fui me escorar no parapeito da varanda.

Lá. Beeeeem lá! Do outro lado da rua. Bem onde o chão toca o céu. No encontro entre os eixos dimensionais que fazem a rua ficar menor no horizonte, naquele ponto focal, vinha uma pinta branca e outra preta o seguindo. Era Messias e o seu seguidor.

Cornetas desafinadas e o dedilhado de violão com castanholas batendo a lá Ennio Morricone soaram em minha mente:



Aquela visão gaseificada do calor emanando do chão ao céu dava um ar de miragem dos cães. Enquanto ele se aproximava, determinado, seguro, confiante e certo de sua ação, olhei para os cães dos vizinhos: estavam fazendo o mesmo que eu, olhando para Messias. Estava parados como estátuas, de orelhas levantadas e atenção redobrada. Nem o piar dos pássaros fazia com que eles tirassem o foco do que estava por vir.
Era uma invasão. Era o retorno daquele que fora expulso do seu território no passado. Entre olhares dos cães a Messias, de Messias aos cães, eu estava entendendo o que estava acontecendo (ou o que iria acontecer): uma disputa de território, um duelo de poder, uma afronta à qualquer representação de poder, uma transgressão, o bom e velho bang-bang dos western-spaghetti do Sergio Leone, Clint Eastwood, Lee Van Cleff e Charles Bronson.

Ainda ao som das cornetas e do violão da cena final de "The Good, The Bad and The Ugly", Messias e seu fiel companheiro, do horizonte, aumentavam de tamanho. O salsichinha que fora o primeiro a ver o que iria acontecer latiu silenciosamente como se estivesse proferindo palavras de espanto: não pode ser. Sim! Aposto que aquele latido era exatamente isso. "Não pode ser...". outro que estava dormindo na entrada da porta levantou as orelhas, acordou e olhou pro seu amigo, foi até a rua e viu a cena. Latiu também. Chamou mais três. Eram cinco contra dois... Os cães estavam preparados. Sérios, nervosos. Sabiam do seu destino.

Messias parou a três casas da casa deles. E ficou encarando-os... Deus! Que cachorro! E eu ali não acreditando no que estava vendo. Não podia tirar foto nem gravar, pois a câmera estava no quarto e eu não queria perder nada. Fiquei em silêncio e observei o que se sucedeu:

Depois de uns minutos trocando olhares, o salsichinha avançou um pouco e começou a latir. A imagem lembrava o líder do pelotão animando os colegas e preparando-os para a batalha, temeroso do que fosse ficar sozinho e abandonado. Messias firme e imponente. Parecia um deus. Naquele momento entendi o que Bukowski quis dizer com "parece ter mais poder do que dez mil deuses", em seu poema "cão". A cena era para se fechar as portas e janelas, por as crianças para dentro da casa e de se deixar acontecer o que não se pode controlar e impedir que irá acontecer.

Messias avançou.

Seu companheiro ficou para trás garantindo a retaguarda.

Os outros cães começaram a latir para ele, mas sem avançar.

Messias continuava.

Agora eram duas casas que o separava dos outros.

Latidos.

Muitos latidos.

E  Messias firme.

Uma casa.

Os cães recuaram um pouco, mas continuavam a latir.

Messias sabia que cão que morde, não ladra.

Ele chegou na casa, passou pelo muro, invadiu o terreno e chegou na única árvore do pátio.

Os outros recuaram para a rua e ficavam latindo. Agora não era latido de bravura, de coragem, de "Vamos à luta e à morte, companheiros". Não! Era de piedade, de clemência, de derrota e covardia.

Messias levantou a sua perna e urinou na árvore. Marcou território. Levantou a Bandeira. Depôs o poder vigente. Virou lenda, rei e deus em um só momento. O dono da casa, escutando a gritaria, saiu da casa e viu a cena. Pegou o chinelo e atirou em Messias. Magicamente, como se tivesse batido em uma áurea divina, o chinelo desviou e não acertou. Caiu antes de chegar no cão. Perdera a força.

Messias saiu do terreno, calmamente, com um sorriso de vitória e a língua de fora, passou por entre os cães que bradavam insultos inúteis e pedidos de revanche, calmamente. Ele passou por ENTRE eles, não do lado. Ele desmembrou a formação. O Aquiles, desbaratador de exércitos, canino. Eram cinco contra um nessa hora e o um dividiu dois prum lado, três para outro. E seguiu até onde seu fiel amigo, o qual ficara parado no mesmo lugar, SENTADO, estava.

Até a Natureza transgride e briga pelo seu território.

Certo que na noite anterior, Messias e seu companheiro tramaram tudo.

"Amanhã, quando sol estiver no centro do céu, iremos mostrar quem manda." - deve ter dito Messias antes de dormir.

Sergio Leone que me desculpe, mas aquele sim foi o melhor duelo que eu já vi.


Matheus I. Mazzochi




segunda-feira, março 11

O Polêmico Dr. Ando na Linha

- Então, o que te trás aqui? - pergunta o psicólogo.
- O táxi. - responde, seria e desafiadoramente, o paciente jovem.
Pausa e silêncio profundo.
- Quanto custou a corrida?
Nenhuma resposta do jovem
- Sabe, às vezes eu pego um táxi.
Pausa.
- É, às vezes eu pego um táxi. Gosto de sentar ao lado do motorista e ficar conversando com ele. Mais escutando do que conversando, se é que tu me entende....(risos). O mais difícil é começar uma conversa. Geralmente pensamos nos clichês: " Tá bom o tempo hoje, não é?", "Muito movimento na cidade?", "Será que o Grêmio ganha dessa vez?" essas coisas que parecem ser forçadas, mas são tentativas de se começar uma conversa civilizada.
Outra vez, nenhum comentário do paciente. O menino continuava fitando-o quase sem piscar.
- Não? Olha... Eu não faço ideia do que tu tem para me dizer ou do que te obrigaram a vir aqui falar para mim, mas arrisco em dizer que estou curioso em saber e quero muito ouvir.
- Não quer não. - respondeu timidamente o jovem.
- Tá me chamando de mentiroso?
- Por que tu iria querer me escutar?
- Teria motivo para eu não querer? - levantou a sombracelha ao jovem.
A resposta foi uma cara emburrada. O menino apertou os olhos mais ainda.
- Meus pais acham que eu não vou bem na aula.
- Então seus pais acham que tu não vai bem na aula?
- É... Foi o que eu falei...
-M-hm.
Silêncio.
- E o que tu achas?
- Que eles estão errados.
- Boa defesa.
Silêncio.
- Qual a tua matéria preferida? - perguntou em tom amigável.
- Educação Física. - respondeu o paciente em tom amigável.
- É uma boa matéria. Eu gostava de matemática.
- Como tu gostava de matemática e tá aqui? Deveria estar fazendo engenharia ou computação ou coisas do tipo. - questionou o menino
- É pra tu ver como as coisas são. A vida é engraçada.
- Não achei engraçado.
- Quer saber o que não é engraçado?
- Quero.
- Fedelhos mimados como tu mentindo descaradamente pra mim, enquanto o pai torra a grana nessas sessões.
O menino faz uma careta e não consegue responder nada.
- Sabe por que eu tenho um copo de água aqui na mesa?
- Não.
- É pra me ajudar a engolir essas besteiras, caralho. Tu tá estudando ou não?
- Tu vai contar pra ele? - perguntou o menino.
- Não.
- Mesmo?
- É,é,é... Não posso contar. A Ética e essas coisas, sabe?

Matheus I. Mazzochi