Lembro até hoje da noite em que virei motivo de piada.
E até hoje ainda sou...
Aquele momento em que um somatório de ações acaba gerando risadas de
pessoas que se divertiram com a situação.
Aquele momento em que é lembrado todo tempo que nos reencontramos...
Às vezes, até terceiros chegam pra ti e falam:
“Ei, cara, o fulano disse para tu combinar com ele de saírem para
comerem um coraçãozinho.”
Sacanagem... Só que sacanagem é outra coisa.
Às vezes, não há situação melhor que um bom palavrão não possa descrever.
Mas isso é outra história...
Um dia, há, talvez, uns quatro anos atrás, três grandes amigos se
encontraram: um poeta, um maluco por aventuras e um que consegue falar a mesma língua
que eles. Somos iguais, entende? Mesmo com nossas diferenças. Rimos das mesmas
piadas e gostamos das mesmas bebidas. Chegamos ao bar pelas 19 horas e já
começamos com os trabalhos. Meio timidamente, mas depois, naturalmente. Drinks
novos e papos velhos.
Surge a fome.
Mata-se a sede.
Chama-se o Garçom.
“Uma porção de coraçãozinhos, por favor.”
Está montado o palco...
Palitos de dente solitários e finos com um pouco de gordura da comida.
Copos suados.
Mesa suja.
Pessoas conversando.
Histórias.
Aí, como se não fosse surpresa, surge um cara estranho.
Eles nos perseguem. Acho que tinha sido o quarto daquele dia...
Educadamente nos saúda e alega não querer moeda.
“O que há de bom?” – nos pergunta.
Silêncio constrangedor.
Temos tudo e ele não tem nada.
Dura realidade. Mas é a realidade.
Começamos a nos coçar. Não temos moeda pra dar, mas temos uma mesa
farta de comida.
Pergunto se ele aceita.
“Claro, vou pegar uma cadeira.” – e ri.
Pedinte cadeirante...
“Só não vou beber, pois estou dirigindo.” – outra risada.
Rimos também, com um pouco de timidez e tristeza.
Oferecemos o coraçãozinho. Ele mostra as mãos sujas.
Olho pro palito de dente e pro coraçãozinho e pra mão dele e pros meus
amigos.
“Aqui, cidadão, deixa eu te ajudar.”
Faço uma concha com a outra mão e dou na boca dele.
“O que acha?” – pergunto.
Ele gostou. Pediu mais. E mais outra vez, dei de comer na boca do
pedinte cadeirante.
Ele agradeceu a bondade.
“Obrigado, senhores. E Lembrem-se: para curar amor platônico, só mesmo
uma trepada homérica.”
E sumiu como o Mestre dos Magos.
Os dois me olharam e começaram a rir.
“Só tu mesmo” diziam.
Talvez, a bebida faça as pessoas serem melhores ou a própria bondade
haja nessa nossa natureza confusa que, por não sabermos, acabamos por quebrar
as correntes que nos escravizam e agimos da melhor maneira possível. Foda-se o
que os outros vão pensar.
Até chegar uma mulher.
Loira.
De vestido preto e meia-calça preta.
Com amigas.
E ela conhece um dos três amigos que estão a quatro horas bebendo e
dando comida na boca de mendigos.
Convidam para irmos a uma festa.
Apresentações desanimadas e a cerveja ficando quente.
“Quanto é a entrada?” – pergunto.
“Doze reais” – responde a mulher.
“BAH! Eu não entro. Podem ir vocês, mas eu to fora.”
Olhar de desprezo dela:
“Ah, para, como se vocês não tivessem gastado muito mais... Vai ta super
boa e melhor que isso.”
“Nós estamos desde as sete horas aqui. Tu vai pagar pra nós?”
Boa.
Muito bem.
Parabéns, rapaz.
Dá comida na boca de um mendigo cadeirante e é grosso com uma bela
mulher. É muito bonito isso. Muito cavalheiro. Orgulho do pai e da mãe.
“Cara, como é que tu me faz isso?” e perguntas desse tipo surgiram da
boca dos meus amigos.
“Deixa eu te entender... Não! Deixa eu tentar te entender... Tu é
educado e dá comida na boquinha do marginal, mas é um troglodita com uma mulher
daquelas?”
“Foda-se isso e a tua argumentação.”
Todos riem e eu fico sério.
Aquele cara não tinha o que ela tinha, mas pelo menos era bem humorado
e gentil. Foi parceiro em ver a beleza da simplicidade de uma roda de amigos,
cerveja e coraçãozinhos em cima de folhas de alface murchas. Ele não andava. E
fazia piada disso! Tá certo que ele não cheirava a Victoria Secret’s, mas não
era lá tão ruim assim... O homem era higiênico! Tanto é que eu tive que
alcançar a comida para ele. Agora, elas não. Não! Ofenderam um belo momento
entre amigos. Chamaram de “isso” toda a maravilha do universo.
E até hoje, quando nos reunimos como os tios do poker do sábado à
noite, lembramos dessa cena.
E o cara ainda ta lá. Em Downtown. Às vezes, encontro ele e lembro-me
dos coraçõezinhos.
Obviamente, ele não se lembra de mim.
Anawate e Boenavides, temos que "pepetir".
Matheus I. Mazzochi
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