quinta-feira, fevereiro 23

"Não gosto de Urologistas", ele dizia.

"Não gosto de Urologistas", ele dizia.
Sempre quando o assunto chegava perto, sua opinião era sempre ouvida por todos:
- Não gosto de Urologistas.
- Mas por quê?
- Porque não gosto.
Sempre quando o assunto era tocado, sua opinião era ouvida por todos:
- O Tio Fernando terá de ir a um Urologista.
- Coitado...
O homem tinha um filho e uma filha. O menino era mais velho que a menina. Ele tinha dez anos; a menina, cinco. O pai sempre foi atencioso e um bom exemplo para ambos. Adorava a filha.
- Como vai a princesinha do papai?
- Bem. To brincando aqui.
- Até brincando és a princesinha mais linda.
Ela adorava os elogios do pai. Depois de cada frase exagerada, a filha sempre pulava nos braços dele para ficar agarrada.
Seu relacionamento com o filho tambem era bom. Quando o menino prestou  vestibular e passou por todos os estresses que todos têm de passar para se tornarem alguém de respeito nos dias de hoje, os conselhos do pai ajudaram muito o menino. Enfim, chegou o grande dia. Pai levantava cedo para levar seu primeiro filho para o seu primeiro vestibular. Orgulho misturado com nervosismo.

                                                                           *
O listão saiu.
- CARALHO! PASSEI! PUTA QUE PARIU! PASSEI, PAI!
- CARALHO! PUTA QUE PARIU! MEU FILHO É FEDERAL!
No primeiro vestibular prestado, o menino entrara na Universidade Federal.
Escolhera Medicina.
                                                                           *
A vida foi seguindo seu rumo como tudo nesse mundo. O homem estava envelhecendo e precisava fazer seus exames anuais. Como de costume (ano após ano), reclamava ao ir ao Urologista. Certo dia, em uma consulta, disse:
- O senhor tambem trepa, doutor?
- Tambem sou homem, meu amigo.
- Então não me venha com abstinência sexual, porra. Sejamos humanos.
Quando chegava em casa, a mesma coisa:
- Como foi lá?
- A mesma merda. Não gosto de Urologistas.
Muito tempo se passou até que seu filho se especializou em uma área de atuação medica: escolhera a Cardiologia. Um doutor especialista nas doenças do coração. O orgulho do papai e da mamãe. Estava já crescido, independente financeiramente e namorando. A família já havia conhecido a suposta noiva. Uma janta fora feita para celebrar esta nova fase. Todos convidados: familia e familia da nora, amigos do filho e amigos dela, amigos da família em geral. Estavam todos felizes. O pai era só orgulho. No brinde, levantou a taça e bradou:
- Ao Cardiologista!
- Ao Cardiologista! - todos repetiram.
Durante a festa, ficara longe dos jovens médicos que preferiram pela Urologia.
- E a tua área, meu jovem?
- Urologia.
- Não gosto de Urologistas. - dito isso, levantou-se e foi conversar com outros.
No final da festa, chegara perto do filho e disse:
- Meu filho, o pai ainda se lembra quando eras um bebezinho...
- Ah, pai...
- Sempre soube que serias o melhor. Eu via a carinha de safado quando a mamãe o pegava e o amamentava. "Esse vai render" eu pensava. Realmente.
- Obrigado, pai...Acho.
- Não sabe o alívio que me deu ao saber que não serias Urologista.

                                                                         *
Bem, o homem tinha uma filha também! E ela já havia entrado na Universidade e tambem já havia começado a namorar. A família já sabia das novidades, porém o genro era apenas um nome que ecoava pelos corredores da casa. O pai estava curioso para saber quem era o marginal que iria roubar sua princesinha de casa.
- Quantos anos ele tem?
- Ele tem trinta.
- Trinta? Mais velho... E o que faz da vida?
- Ele estuda na mesma Universidade que eu, pai.
- Conhece a família dele?
- Já conheci. A família é bem legal.
- Ele te trata bem?
- Muito. É super carinhoso comigo. Sabe, realmente, como fazer uma mulher feliz, sabia?
O pai já havia saido da sala.

Eis que o dia do "marginal" aparecer chegou. Fora feito um churrasco como de costume. Pai, Mãe, o filho Cardiologista (orgulho do pai) e a nora. Todos presentes. A campainha tocara.
- É ele! - disse a menina.
Ela correu para a porta. A mãe continuou conversando com a nora e o filho com o pai ali na churrasqueira.
- Pai, Mãe... - chamou todos. - quero apresentar o meu namorado.
"Olá", "Oi", "Como vai?" e "Tudo bem?" foram sendo ditos ali. O rapaz era bonito, limpo e discreto.
- Esse é o papai. - disse a menina, levando o namorado até a churrasqueira, pois o pai não saiu dali.
- Oi. Eu sou o pai. - apertara a mão do jovem e olhara bem em seus olhos. Gostara dele a partir dali.
A conversa vem tão natural em um ambiente com comida, quanto a gula. Histórias foram contadas, causos, ditos populares, opiniões políticas e futebolísticas, quem iria ser eliminado no reality show mais batido que mulher de brigadiano. O pai havia gostado do jovem. Podia ser ele o homem para se entregar a filha? Calma lá!
- Então, meu jovem, o que tu faz pra ganhar a vida?
- Pai...
- Eu faço Medicina.
- Meu filho tambem faz. É um grande Cardiologista.
O Cardiologista falou:
- Sou um Cardiologista, apenas. O velho gosta de exagerar. Seus elogios são tão altos quanto a sua pressão.
Todos riram. Alguns porque realmente acharam engraçado o comentário; outros, por educação. A mulher do Cardiologista preferiu seguir a última.
- E tu?
- Eu comecei a pouco a trabalhar. Já me formei.
- Meu namorado é Urologista, pai.

Os mistérios da vida e a ironia do destino sempre serão algo para nos tirar o sono, mas para os Psicanalistas que carimbam Freud em suas testas, nada mais pode ser surpresa.


Raul Luar


    

sexta-feira, fevereiro 17

Com Licença

Sentada no sofá, ela está com sono.
Seus olhos estão quase se fechando.
Dorme, pequena, dorme.

Sonhe, linda, sonhe.
Sonhe com o futuro lindo,
Sonhe com ele vindo.
Só não sonhe com anjos, pois eles não têm sexo.

Mas ele ainda não chegou.
Ela preparou um achocolatado e o está bebendo.
Como eu gostaria de ser aquele copo frio para estar nas mãos quentes dela.
Como eu gostaria de ser aquele achocolatado para poder tocar em seus lábios macios.

Ela ri enquanto vê a televisão.
Seu sorriso cora seu rosto.
Bochechas rosas, dentes brancos, olhos castanhos...
...
Vou sair daqui e assumir meu posto.

Boa noite a todos.


Matheus I. Mazzochi

domingo, fevereiro 5

Mulheres

            " (...) Eu conseguia inventar homens na minha cabeça, pois era um deles; mas, as mulheres, era quase impossível escrever sobre elas sem as conhecer de fato. Assim, eu as pesquisava intensamente e sempre descobria seres humanos lá dentro. Deixava a escrita de lado. A escrita representava muito menos que o episódio vivido em si, até que terminasse. A escrita era apenas o resíduo. Homem nenhum precisava de mulher para se sentir real de verdade, mas era bem legal conhecer algumas. Daí, quando o caso ia mal, o sujeito conhecia pra valer o que era a solidão e a loucura, e assim ficava sabendo o que o esperava quando seu próprio fim chegasse...
              Eu era sensível a muitas coisas: um sapato de mulher debaixo da cama; o jeito de elas dizerem: 'vou fazer xixi'; prendedores de cabelo; andar com elas pelos bulevares à uma e meia da tarde, só os dois, juntinhos; as longas noites bebendo, fumando, conversando; as brigas; pensar em suicídio; comer juntos e se sentir bem; as brincadeiras, as gargalhadas sem motivo; sentir milagres no ar; estar junto com elas num carro estacionado; lembrar amores passados às três da manhã; ser avisado de que você ronca; ouvi-la roncando; mães, filhas, filhos, gatos, cachorros; às vezes morte, às vezes divórcio, mas sempre tocando pra frente, sempre chegando no ponto final; ler um jornal sozinho numa lanchonete, nauseado pelo fato de ela ter se casado com um dentista de QI 95; pistas de corridas, parques, piquenique nos parques; até prisões; os amigos chatos dela, os seus amigos chatos; seus porres, a dança dela; seus flertes, os flertes dela; as pílulas dela, as suas trepadas fora do penico, ela fazendo o mesmo; dormir juntos...
              Nada de julgamentos; se bem que, por necessidade, a gente acaba ficando seletivo. Pairar acima do bem e do mal fica bem na teoria, mas para seguir vivendo é preciso selecionar: algumas são mais ternas que as outras; talvez sejam apenas mais interessadas por você. Às vezes, as belas por fora e frias por dentro são úteis  só para uma boa sacanagem, igual aos filmes de sacanagem. As mais carinhosas trepam melhor na verdade, e depois de um tempo ficam lindas só por estarem ali. (...)"  

                                                                            Henry Chinaski

Mulheres - Charles Bukowski - 1978

sábado, fevereiro 4

A Beleza do Corpo Feminino

Raul Luar, certo dia, foi caminhar.
E encontrou a morena de seus sonhos.
A sétima, devemos ressaltar,
Na sacada, em gestos enfadonhos.

Curioso, o poeta apaixonado
Escondeu-se atrás do muro,
Para admirar embasbacado
A beleza do corpo puro.

A beleza do corpo feminino,
Pelo melhor escultor esculpido,
Deixa qualquer homem são
Na mira do cego cupido.

Eis que a morena debruçou-se na varanda.
E seus lábios caramelados liberaram um suspiro.
Como a parte circular da Lua surgindo entre a nuvem branda,
Os seios foram sendo apertados. Eis o que me refiro...

Como um jovem virgem hipnotizado,
Raul Luar disse: “Deus meu, assim eu piro”.
Pulou o muro olhando para ela
Preciso e certeiro como um perfeito tiro.

Porem até o tiro perfeito pode ricochetear,
Se na frente dele algo surgir.
E Raul Luar não poderia adivinhar
Que do outro lado do muro, um cão estava a dormir.

Matheus I. Mazzochi

Por Conta Própria

"É muito confortável ser um menor. Se eu tenho um livro que pensa por mim, um pastor
que age como se fosse minha consciência, um físico que prescreve a minha dieta e
assim sucessivamente, não tenho então necessidade de empenhar-me por conta
própria. Se eu posso pagar, não tenho necessidade de pensar. Muitos poderão
discordar comigo nessa matéria: os próprios guardiães que se encarregam de cuidar
para que a esmagadora maioria da humanidade – e, dentro dela, todo o sexo feminino
– não alcance a maturidade, não apenas por ser desagradável, mas extremamente
perigosa. Tais guardiães tornam estúpido seu gado doméstico e cuidadosamente se
previnem para que suas dóceis criaturas não tomem caminho próprio sem seus arreios.
Assim, eles mostram para seu gado o perigo que pode ameaçá-los caso pretendam
andar por sua própria conta.

Na verdade, o perigo não é realmente tão grande quanto parece. Afinal, depois de
tropeçar um pouco, todos aprendem a andar. Entretanto, exemplos de tropeços
intimidam e geralmente desencorajam todas as novas tentativas. Portanto, é muito
difícil para o indivíduo agir por sua própria conta e superar a menoridade, que se torna
para ele quase uma segunda natureza. Assim, mesmo que esteja já amadurecido, o
indivíduo é desde o início incapaz de usar seu entendimento por conta própria porque
nunca se permitiu tentar fazer isso. Dogmas e fórmulas – estas ferramentas mecânicas
para usos razoáveis (ou, pelo contrário, abusivos) das dádivas naturais dos indivíduos –
são os grilhões de uma duradoura menoridade. O homem que se livra deles dá um
salto incerto acima do abismo, mas este tipo de movimento livre não é comum. Eis a
razão para o fato de que apenas poucos homens caminham decididamente e saem da
menoridade, cultivando seus próprios pensamentos. No entanto, é praticamente certo
que o público possa esclarecer-se. De fato, basta que a liberdade seja dada para que o
esclarecimento torne-se praticamente inevitável.

Sempre haverá pensadores independentes, mesmo entre os auto-intitulados guardiães
da multidão. Uma vez que tais homens livrem-se do jugo da menoridade, derramarão sobre si o espírito de uma apreciação razoável do valor humano e de seu dever de pensar por conta própria. (...)"

Immanuel Kant - Trecho de "Esclarecimento" (ou "Iluminismo") -1784