sexta-feira, novembro 29

Vida Moderna

Em meio ao turbilhão das ruas, em meio à rotina incansável da modernidade humana, ele consegue encontrar um tempo entre as Camélias e os seus odores doces para ler e meditar. Em plena meditação, inúmeros pensamentos e sensações emergem. Respira fundo, relaxa e se alivia de tanto estresse.

Abre um livro.

No pequeno espaço de tempo criado pela seu esforço em manter a sanidade mental, lê Hamlet. Tantas questões em sua mente, tantos questionamentos, tantas incertezas, tudo resume-se em Hamlet. Está no V ato. Cena I. Dois coveiros conversam sobre a melhor das respostas. "Quem constroi mais forte que o pedreiro, o engenheiro e o carpinteiro?", é a pergunta que nunca irá findar. Ele, absorto, hipnotizado, concentrado e esquecido do mundo ao seu redor para de ler. Fecha o livro. Antes de continuar fica refletindo. "Quem seria?". Pensa, pensa, pensa... "A fé? O amor?". Depois de minutos, decide continuar sua leitura: o coveiro. A eternidade em pequenas páginas escritas em plena idade média. E durando até hoje... Questões humanas ultrapassadas, porém atuais em nossas vidas tão diferente das antigas. Será mesmo? Hamlet entra em cena com Horácio. Conversam sobre a finitude do ser, sobre os ossos e a identificação desses. "Dizem que enlouqueceu de maneira muito estranha", "estranha como?" - pergunta Hamlet - "Parece que perdeu o juízo.", "E qual foi a razão?" - pergunta novamente - "Achar que não tinha razão."

Essa vida louca que vivemos. Vida sem razão e na busca dela, enlouquecemos. Talvez, sim; talvez não. Hamlet pega um crânio e pergunta quem era. O coveiro diz ser Yorick, o bobo do Rei. Onde estão as piadas agora, Yorick? Estás sorrindo para nós, mas não escutamos suas gargalhadas. Estás mais engraçado agora morto do que vivo? Suas piadas estão mais vivas quando morto do que quando estavas vivo? Pobre homem, fraco de alma e sem nenhum espírito de humor... Hamlet larga o crânio, pergunta a Horácio se as cinzas de Alexandre, o grande, são reconhecidas tanto quanto são as dos "outros" homens. Óbvio que não são. Alexandre, o grande, também apodreceu, também fedeu no leito de morte, também virou osso, puro osso. Um crânio irreconhecível em meio a tantos. Eis essa a finitude e o destino de qualquer homem ou mulher?

E pensar que tem muito morto apodrecido andando vivo por aí... Seja político ou não. E isso desde os tempos de Shakespeare. Em plena reflexão sobre sua existência e sobre si, decide fechar o livro. É tempo. Tempo de voltar à realidade moderna. Cumprir horas, compromissos, promessas.

Vida moderna, vida corrida.
Vida moderna, vida mal vivida.

Olha o relógio. É tempo. Puxa a mochila às costas e cantarola em meio aos doces aromas das Camélias brancas de Alexandre Dumas Filho  "Blowin in the Wind".

"How many roads must a man walk down, before you call him a man?"

E eis que a resposta vive soprando no vento que balança as folhas e as flores das camélias. Balança tudo. Agitando os galhos dessa infinita Árvore da Vida.

Matheus I. Mazzochi

quarta-feira, novembro 27

A Vida para Maiores de 20 Anos.

- Tá te formando em quê?
- Psicologia – ele diz.
-Baaaaaaah! Olha aqui! Ó! – e num frenesi ele coloca os dedos na boca e assobia – Cambada de loucos filhos da puta! Taí a salvação!
(A mesa toda começa a rir em meio às garrafas e cinzeiros)
- Tchê, esse aqui, esse mesmo – diz o velho e experiente homem apontando para o rapaz da ponta da mesa. – anda sofrendo um puta trauma: ele é gay, mas não quer contar pro pai. A mãe já desconfia, mas sabe como é mãe, né... Elogio de mãe não vale!
- Hahahaha!
- Tu deve entender. Freud dizia isso, não é?
- Talvez.
- É. E esse aqui tem comichão no saco. Não consegue parar de comer a mãe daquele. – aponta para outro lado da mesa. Todos estão curvados de tanto rir e batendo suas palmas da mão na mesa como se estivessem pedindo clemência. – Esses dias mesmo esse louco me disse que andava comendo a minha irmã...
- Andava não: ainda como.
- Como é? – pausa de suspense – Mas eu te dou um soco nessas bolas murchas que vai te fazer falar fino! Ah, não! Peraí! Lembrei agora! (A parte)É que o cara fica velho, aí é foda... (Para todos) Tu não tem mais bolas depois daquela cirurgia de transgenitarização.
- Bah, pegou pesado! – diz outro.
- Tu tá defendendo ele, é? Ih... Já entendi. Ele anda te comendo, é?
(gargalhadas)
- Pode falar mesmo, estamos aqui entre amigos, todo mundo se conhece e já trocou intimidade. Esses dias ele me deu uma chupada gostosa (olha para o homem a sua frente). Como ta tuas costas, Carlos?
- Tão ainda doloridas... A tua mãe não me dá descanso! – responde Carlos com o copo prestes a ser bebido. Todos voltam a gargalhar. Praticamente, não há pausa entre uma piada e outra de tanto trago e bom humor.
- Ih... Mas vai tomar no cu, filho da puta. Comi tua irmã ontem e ela me disse que não sabia o que era homem. O que tu tem feito?
- Ele anda arrumando o cabelo, fazendo a barba e escutando Ney Matogrosso. – Intromete-se Ricardo.
- BAH! Ney Matogrosso! – em coro, todos.
- É putão, to falando... Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, tudo coisa de menininha. Música de macho tem que ter cheiro de corpo! Ó – diz estufando o peito e mostrando o braço com as veias saltadas – Olha que coisa viril!
- Ah, Caetano Veloso é bom.
- Ih!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
- Vai dizer que tu não gosta? Tu diz isso por não entender o que ele canta!
- Mas tu entende? O cara canta com o pau dos outros na boca e fala fino como se tivessem metendo atrás.
(mais risadas)
- Que barbaridade...
-Bah, baixou o nível...
- Eu baixei outra coisa...
(risadas)
- Hein, ô, vou te contar... Baixei as calcinhas da tua mãe. Que porra de tamanho que ela usa? Deus o livre! Fiquei horas tentando comer ela.
- Ih! A velha te matou no cansaço?
- Não. Quem me matou no cansaço foi tu irmã, mesmo, aquela vadia! Matou eu e mais três amigos meus ao mesmo tempo.
-BaH! Pega leve, Raul!
(gargalhadas.)
- Isso que dá ficar escutando essas músicas...
- Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque... tudo coisa de sentimentalista que não sabe nada.
- Não, não! – intromete-se Fernando. – Gilberto Gil e Chico Buarque, não!
- Agora pegou!
- Isso tudo é música vitaminada. É coisa linda.
- Te apaixonou por aqueles olhos azuis, né? Pode dizer pra nós... (todos riem)
- Quê, quê, rapaz... Me apaixonei por outra coisa de olhos azuis que tu deve conhecer... aliás, manda um abraço e um beijo pra tua mãe. Diz praquela vadia me ligar.
(mais risadas)
- Taí a cerveja gelada – diz o dono do bar.
- Ô, negão! Esse aqui diz que ta comendo tua irmã, não vai dizer nada pra ele não?
- Tu tá comendo minha irmã, cara? Que porra é essa, caralho?
- Ela é fogosa, negão, que que eu posso fazer?
- Não, peraí que agora eu fiquei confuso... Não pode ser tu, pois ela me disse que o Raul não tem nada entre as pernas.
- Bah!!!!!!!!!!!! (gritaria e bateção de mesa em plenas risadas. Uma pessoa passa na rua e olha com cara de espanto para o bar).
- Te descobriram, Raul.
- O cara não aguenta depois da 5ª vez na mesma noite... Falei que ela era fogosa. – defende-se.
- Mas, ô, negão, é gostosa tua irmã, puta que o pariu...
- Alguém tinha que ser bom nessa família, né?
- É verdade...
Aparece aquele silêncio de assunto morrido, aquele suspense de reinício de conversa até que alguém tenta renascer de novo...
- Ô, filho da puta – chama a atenção dando um tapa nas costelas – esses dias vi tua mãe brigando com os travestis lá na esquina.
- Vai tomar no cu antes que eu me esqueça.
- Porra, eu to sendo amigo em te avisar e é assim que tu me trata? Ora... Vai te fuder... Bem que o Ricardo disse que eu tinha que comer a tua irmã, aquela vadia gostosa. Ô louco, tinham que ver como era a cena. Aquela pitanga!
- Malvado, malvado... – diz Ricardo.
- Olha só gente, parem de frescura senão eu vou fechar essa porra, tão ouvindo? Eu vou fechar esse bar e mandar todo mundo tomar no cu e sair daqui.
- Ah, vai tomar banho, negão! Se tu fechar como tu vai pagar as contas?
- Ué, mas a tua mãe não disse que eu to comendo ela e que ela me banca? Ih, rapaz, ela disse que ia te avisar!

E todos gargalham como se não tivesse o amanhã, como se não fosse necessário prestar contas, bater ponto, justificar faltas ou pagar algum aluguel exploratório; como se o Grêmio tivesse sido campeão do mundo ou o inter campeão do brasileirão; como se o país não sofresse de corrupção e não houvesse mais miséria no mundo; como se as pessoas não precisassem catar comida nos lixos ou pedir para o caminhão do lixo seletivo parar para poderem coletar uma madeira ou papelão que serviria de sustentação de suas casas; como se houvesse paz e não mais exploração; como se todos fossemos um só; como se a música fosse a única linguagem universal; como se a eternidade fosse uma nostalgia bucólica de bem viver e bem agir e como se as pessoas, de fato e indubitavelmente, tivessem livre-arbítrio e não fossem abusadas em seus trabalhos pelos seus chefes ou pelo próprio Leviatã de Hobbes...; como se o fim do mundo estivesse chegando e suas almas estivessem sido salvas pelos arcanjos e pelo próprio Deus.

Matheus I. Mazzochi



quarta-feira, novembro 20

A Morte anda nas ruas solitárias e escuras.

A Morte anda nas ruas solitárias e escuras.
É nas noites frias
Que ela bate em minha janela
Ao som das constantes ventanias.

Um balão vermelho rola sozinho na calçada.
Murcho.
Eu sei que Ela está lá na escuridão.
Buscando algum desavisado
Que vaga em solidão.

Na busca por si mesmo fora de si
Mal sabendo que irá encontrar o seu destino.
Ali, ao esmo,
O viajante a vê em um cruzamento.

Sua foice é afiada como a língua
E sua roupa é negra como o Universo antes da Luz.
Seu toque é frio como o coração de algumas mulheres
E seu rosto é invisível por baixo daquele capuz.

E eis que me vejo diante dela em um cruzamento das ruas da vida.
Perco o ar. Penso na eternidade. Arrependo-me e me orgulho.
Faria tudo de novo? – ela me pergunta em assobio sedutor.
E eu respondo que faria tudo de novo nessa vida ou em outra.
A Morte faz um silêncio mortal e eu fico no suspense do dia a dia.

Ela some.
De novo, um dia, Ela há de volver.
E eu não sei se estou morto em um sonho de vida
Ou vivo em processo de morrer.

Matheus I. Mazzochi


domingo, novembro 17

Uma lembrança que virou um Tratado.

Eram bons tempos.

Bons tempos são sempre os que nós olhamos para trás e vemos que passaram e que não voltam mais. Aí bate a tal da saudade com algum gosto de arrependimento. Como um tempero. Às vezes, vem mais tempero que comida. Aquela sensação de "porra! Quero de novo.", mas já diziam que não tem como cruzar o mesmo rio duas vezes e que não importa o quão bom, inteligente, talentoso ou rico possas ser, não tem como cruzar o mesmo rio duas vezes... e voltar ao tempo e matar a saudade.

Graças ao Universo que podemos escrever.

Podemos escrever e no processo de escrita lembrar como era. Como era ver aquilo tudo, como era sentir aquilo tudo, como era adiantar a saudade futura ao olhar para trás e esquecer de vivenciar o presente já nostálgico. No processo de escrita criamos, claro... Senão as coisas poderiam ser mais chatas (ou até melhores escritas, em alguns casos), mas isso é muito subjetivo. O ponto que quero chegar é que no processo de escrita lembramos. Aí, sim! Eis o perigo. Lembramos das imagens e dos sentimentos. Eles voltam. Surgem não sei de onde no âmago de nossas entranhas e no opaco de nossas almas e, como abrindo uma persiana, abrem nosso tórax e saem diante de nós. Lembranças e emoções. É uma terapia. Só que de graça e pode ser feita em casa de chinelos de dedo, bermuda e uma boa bebida. Se pra ti uma boa bebida é uma água mineral, então é uma água mineral uma boa bebida. Sem preconceitos ou avaliações. Chega disso.

Pelo menos aqui.

Além de lembrar, tem-se a tal da liberdade. Precisa-se de mais que essa mera postagem para discutir se ela existe hoje ou se precisamos buscá-la. Vou ser breve, pois não estou com muito tempo (a tal da liberdade de novo...), mas a liberdade de escrita, a licença poética em dizer "foda-se" aos dogmas gramaticais, ao congelamento da expressão humana, ao modismo. Não quero ser visto como um anarquista gramatical. Bem, agora soou interessante, melhor deixar quieto e sub entendido. Gosto de sub entendimentos. Se é que me sub entendem...

Bem, sobre a tal liberdade... Ia escrever uma excelente lembrança que me veio de um grande momento que provavelmente voltarei a escrever de uma forma mais narrativa. É que quando comecei o processo de escrever, veio tanta coisa, tantos pensamentos, que não teve como não colocar no papel. E ando cansado de não escrever e de colocar frases ou textos de outros caras, outros autores que sabiam escrever. Pelo menos eu acho. Talvez eles estivessem se enganando, mas quem sou eu para julgar isso? Eram homens que devemos lembrar de igual forma. Pois tentaram. Como diria Ele: e lembremos dos velhos cães que sabiam brigar... Brigavam consigo mesmo.

Afinal, pelo menos, diante de uma folha em branco, eles eram livres para sonhar e criar.
E eu acho que criar pode ser algo muito saudável para o ser humano. Algo transcendental, até fraternal. Pois creio, quando criamos, colocamos um pouco de nós na criação. É a dedicação, o sacrifício e o carinho. Talvez tenha mais alguma coisa que não me vem à mente, mas deve ter. É aquela sensação de imortalidade e de ter espalhado algo. Pode ser algo bom ou ruim, mas foi espalhado. Gerou algo. E esse algo nada mais é que a negação do egoísmo lírico do "isso é meu e não vou dividir com mais ninguém", mas mal sabemos que podemos estar impedindo que alguém leia esse texto, por exemplo, e pense criticamente sobre. Se goste ou repudie. Isso, já seria uma contribuição humana e lírica à existência nossa na Terra.

Devemos tentar abrir mão de algumas coisas, tentar praticar a liberdade. Pois assim, com a liberdade lírica e incondicional, capaz de até nos redescobrirmos e acabarmos nos conhecendo melhor.

Como eu falei, é uma terapia. Uma boa terapia. E o processo de escrever em si só já propicia um momento de reflexão e de lembranças.

Bem, agora, se me derem licença, vou reler tudo e ver como eu cheguei a esse ponto, para me entender, me conhecer e sentir, novamente, aquela sensação extasiante que senti quando o vento fresco da janela bateu no meu rosto e, com os pés descalços ao chão, lembrei de um grande momento que me fez escrever e dividir isso com quem leu esse texto.

Axé.

Matheus I. Mazzochi


sábado, novembro 16

Rainer Maria Rilke e a resposta para tudo.

Paris,
17 de fevereiro de 1903

Prezado Senhor,

     Sua carta só me alcançou há poucos dias. Quero lhe agradecer por sua grande e amável confiança. Mas é só isso que posso fazer. Não posso entrar em considerações sobre a forma dos teus versos; pois me afasto de qualquer intenção crítica. Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados. As coisas em geral não são fáceis de aprender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.
     Feita essa observação prévia, posso lhe dizer ainda que seus versos não possuem forma própria, mas apenas indicações silenciosas e veladas de personalidade. Sinto esse tipo de indicação de modo mais claro no último poema, "Minha alma". Ali, algo de próprio quer ganhar expressão. E no belo poema "A Leopardi" talvez se desenvolva uma espécie de afinidade com aquele grande solitário. Apesar disso, os poemas ainda não são independentes, não têm autonomia, mesmo o último e o dedicado a Leopardi. Sua carta amável que os acompanha não deixou de me esclarecer alguma insuficiência que senti ao ler seus versos, sem no entanto ser capaz de designá-la pelo nome.
     O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se inquieta quando um ou outros redator recusa suas tentativas de publicação. Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobre tudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso. Então se aproxime da natureza. Procure, como o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite a princípio aquelas formas que são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes. Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros.
   E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos. Também não tentará despertar o interesse de revistas por tais trabalhos, pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta para a questão de saber se precisa criar. Aceite-a como ela for, sem interpretá-la. Talvez ela revele que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou.
     Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-lo). Mesmo assim não terá sido em vão o exame de consciência que lhe peço. Seja como for, sua vida encontrará a partir dele caminhos próprios, e que eles sejam bons, ricos e vastos é o que lhe desejo mais do que posso manifestar.
     O que ainda devo dizer ao senhor? Parece-me que tudo foi enfatizado da maneira apropriada; por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento. Não há meio pior que atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranquila.
     Foi para mim uma alegria encontrar em sua carta o nome do professor Horacek; guardo uma grande estima por esse amável sábio, e uma gratidão que se mantém através dos anos. Por favor, mencione a ele o que sinto; é muita bondade que ainda se recorde de mim, e sei apreciá-la.
     Devolvo também os versos que o senhor me confiou amigavelmente. E lhe agradeço mais uma vez pela grandeza e pela cordialidade de sua confiança, de que procurei me tornar um pouco mais digno do que realmente sou, como um estranho, por meio desta resposta sincera, feita da melhor maneira que pude.

     Com toda devoção e toda simpatia,
                                        Rainer Maria Rilke




Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke.
Ed.: L&PM POCKET