sábado, novembro 1

Happy Halloween, eles dizem

Não basta a rotina que temos. Não bastam os comentários idiotas que escutamos na parada de ônibus e nas filas do banco, temos que conviver com os vizinhos. Parece que temos que sempre nos superar, sempre ir além, conhecer e superar seus limites, evoluir. Em outras palavras: conviver com seus vizinhos. Cheguei cansado do trabalho já calculando quantas horas de sono eu teria até acordar no dia seguinte. Enquanto esperava o elevador, vi uma folha mal colada com durex na parede:

Happy Halloween!
Cuidado que nesse final de semana fantasmas muito levadas 
vão bater a sua porta. Então?
Gostosuras ou Travessuras? 

E tinham umas votos aleatórias tiradas do Google Imagens. Aquelas com getty embaixo...É meu amigo, e você reclamando da Copa e das Eleições... Eu não, eu planejei tudo. 

Eis que toca a campainha. Ano passado jogaram todos os doces pela janela e deixaram a escada suja. Falta de consideração. Queriam só tocar o terror, só a anarquia, só a diversão livre. Eles iriam ter nesse ano.

Apaguei as luzes e peguei um roupão preto com capuz. Uma vela vermelha de 7 dias e uma faca de cortar carne. Tapei o rosto e acendi a vela. Destranquei a porta e deixei entreaberta. Silêncio. Um menino empurrou um pouco corajosamente. A porta abriu lentamente revelando meu rosto sério iluminado pela vela trêmula. 

- Gostosuras ou travessuras? - perguntou a menina de fadinha atrás do menino de Robin.
- Sabem que dia é hoje? - sussurrei como o Batman, enquanto ficaram me olhando com uma mistura de graça e outra de medo em seus olhos- Hoje é o dia em que os portais do Outro Mundo se abrem e todos aqueles que estiveram presos nas sombras estão livres para fazer visitas a quem quiserem. 
- Não é não! É o dia das Bruxas, moço- disse Robin em tom triste.
- É! Tu nem sabe que dia é hoje... - respondeu a fada metida - E o senhor vai querer gostosuras ou travessuras?
Ao terminar de dizer isso, a fada começou a fazer uma careta.

Perdi minha paciência e peguei um espelho de banheiro ovalado que havia coberto com um pano azulado. Mostrei a eles e disse que aquele que tiver coragem de ver o que o Outro Mundo tem a mostrar ganharia "gostosuras" da pinhata. 

-Pinhata? Tem doce lá dentro? - perguntou Robin.
- Tem muito, mas tem que ser bem corajoso.

Robin disse que não faria, mas a Fada Metida quis ver. Pedi para ela chegar bem perto e fui tirando lentamente o pano. Aproximei a vela no espelho e perguntei o que ela via. Não conseguiu ver nada. Aí eu disse que era para prestar bem atenção, pois poderia ser difícil no início, mas depois ficava mais fácil. Silêncio tomou conta. A chama de vela balançou circularmente um pouco e Robin perguntou porque eu fazia aquilo. 

- Pelo mesmo motivo que vocês.
- Eu tô me vendo! - gritou a Fada.
- Como assim, moço? - perguntou Robin.
- Eu me vi, moço! Eu me vi! Quero meu doce senão você terá travessuras da Fada Encantada!
- Bem, nesse caso... - e dizendo isso pousei o espelho no chão e, lentamente, tirei a faca de cortar carne do roupão preto. Robin gritou e saiu correndo quando viu a lâmina pela iluminação fraca da vela vermelha e a Fada arregalou seus olhos em pânico congelante. 
- Eu prefiro travessuras! - Encostei a lâmina da faca na bochecha da Fada e ela deixou cair suas sacolas e saiu correndo chorando pelo corredor. Não me contive e corri atrás gritando "Feliz dia das bruxas! HAHAHAHA!".

Eles desceram as escadas gritando e chorando. Acho até que tropeçaram um pouco.


Eu simplesmente sabia que a próxima reunião do condomínio seria mais interessante.


Matheus I. Mazzochi



terça-feira, setembro 2

TOEFL, ressaca e uma mulher simpática

Em um momento de mania me inscrevi. Depois, ciente, vi que teria que acordar pela manhã praticamente o mesmo horário em que acordava ao longo da semana. Final de semana. Acordar no final de semana como se fosse ao longo da semana. Desafios da vida. Olhei pro espelho e disse "foda-se". Acordei no bendito horário junto com os pássaros e com a Alvorada de róseos dedos. Eu e a ressaca. Café forte, garrafa de água, lápis preto e motivação futura de estar plantando algo para se semear num futuro incalculável. Um futuro imprevisível.

A prova é barbada. Cheguei e escolhi um lugar. Sentei. Entregaram-me dois lápis e uma borracha. Pensei "Mas por que, se eu já tenho?" e, colocando a mão no bolso, logo entendi. Recebi, junto com as 30 pessoas  de cara amassada que nem eu, a folha de respostas. Havia uma mulher simpática na frente de todos, lá no alto, no palco. Ela era muito simpática. Simpática demais para quem tinha acordado cedo num sábado. Seu sorriso tranquilo e sua simpatia me lembraram os dos monitores nas provas de vestibular. O TOEFL é muito fácil. A mulher te ajuda a fazer. Ela chega a projetar a folha de respostas no telão e diz como preenchê-la. (Não a mulher, a folha). Ela explica tudo com sua voz simpática e didática. Questão por questão. O complicado começa quando ela coloca um áudio de várias pessoas falando em uma língua incompreensível. Aquele áudio alto, BEM alto, para todos poderem escutar. E a ressaca latejando.

Vieram as regras, as normas, os "não pode" e os "senão vai ser anulada". Riscar na prova foi bem enfatizado. Certo que teve muita gente que fez isso. Vontade de fazer para ser transgressor. O transgressor chato de ressaca. Depois pediram para nós abrirmos a prova (ela veio lacrada. Até nisso complicam) com a ponta de nossos lápis. Naturalmente, ao fazer isso, acabei riscando a porcaria da prova. Incoerências kafkianas. Levantei a mão e a mulher simpática veio.

- Oi. Eu risquei a prova. (mostrei) Isso faz ela estar anulada?

O sorriso simpático sumiu. Ela olhou a prova, olhou pra mim, pensou no problema moral e na incoerência da regra instituída gerada. Aí fez aquele olhar transgressor e disse:

- Ah, apaga com uma borracha. - e voltou-se o sorriso simpático com uma piscadela.

Gostei dela.

Enquanto Alfred tentava elogiar a jaqueta nova de Jenny (Alfred deveria estar desesperado), eu tentava não perceber o zunido que vinha de minhas orelhas e a dor no pescoço. De repente, o silêncio. Alívio. Marquei a alternativa que deveria ser. Sei lá. Parecia óbvio, como tudo o é quando se está de ressaca. Aí veio o Tim. Maldito Tim. Nerd puxa saco. A professora, em compensação, tinha uma voz sedutora. Arqueologia. Altas metáforas.

Entreguei a prova e almejei a cama. Saí da universidade e parecia que o Sol tinha triplicado seu tamanho. Cuidei ao atravessar a rua olhando pros dois lados, pra cima e pra baixo e esperando os carros pararem depois de 10 segundos que o semáforo fechou. Isso me dava 5 segundos para atravessar uma rua de 2 metros e meio de largura. Pensei nisso e calculei minha velocidade média desprezando o ignorado e inexistente atrito. Minha cabeça estava explodindo e eu só fiquei imaginando como seria meu inglês de ressaca. Talvez eu deva fazer outra vez para comparar o COM ressaca e o SEM ressaca e, depois, colocar em dados estatísticos de ANOVA esperando encontrar o desejado p<0,05.

Não sei bem. Talvez eu pergunte para a professora de Tim.

Matheus I. Mazzochi

quinta-feira, agosto 7

O Motim Contra Odisseu

          Dizem as boas línguas que Odisseu, filho de Laertes, foi o humano mais inteligente que pisou neste mundo; e dizem as más, que ele não foi filho de Laertes, mas, sim, de Sísifo, também considerado o mais inteligente. Naquela época o que mais tinha era gente inteligente (e fofoca). Odisseu era tão inteligente que a própria deusa da sabedoria, Minerva, descia do Olimpo pra bater um papo com ele. Trocar um lero. Coisa pouca. 
            Foi Odisseu quem deu a ideia de construir o famoso Cavalo de Troia, registrando nos anais do tempo a existência da zuera no período clássico. 
           Pois bem, apesar de inúmeras as histórias que o louvam, poucas sãos as que não. E há. Pois se Odisseu é considerado o mais brilhante de todos os mortais, que dirá de sua tripulação? Essa é a famosa história do motim contra Odisseu ou, como alguns contam, o dia em que a tripulação de Odisseu foi mais esperta que ele.

Odisseu e sua tripulação estavam voltando da vitoriosa guerra contra os troianos, depois de ter dado uma parada na ilha de Circe, quando um marujo sem o canino esquerdo e de olho fechado avisa a todos de que reconhecia o caminho que estavam navegando. 
             - Eu reconheço o caminho que estamos navegando - disse ele. - É o caminho da incoerência. 
Seus colegas ficaram olhando para ele, enquanto todos continuavam a remar.  
         - Estamos perdidos nessa névoa, com fome, sono e sem vinho. Remando como condenados sem enxergar um palmo a frente, colocando nossas vidas em perigo em meio a essas rochas salgadas e cheias de pontas afiadas. A praia de Troia era mais segura durante a guerra que esse caminho.
            - Odisseu é esperto, ele deve saber para onde estamos indo. - disse em tom leal um puxa saco.
            - Bem, de fato ele é, já o viu alguma vez remar?
            - O que está insinuando?
         - Não estou insinuando nada, estou dizendo a verdade. - e voltando-se aos outros - Odisseu é esperto demais para remar...se é que me entendem. Ele tem uma vida bem cômoda e eu não creio ser o único que ficou puto quando ele furou Polifemo e fodeu com a gente.
            - Ele nos salvou, homem!
         - Não. Ela não nos salvou. Ele se salvou e nós sobrevivemos por estarmos ao lado dele. Que tipo de líder é esse? E te digo mais, ele dorme muito para um herói de guerra.
          - Odisseu é o mais esperto de todos os mortais, homem. Não é a toa que ele tem o título de sábio das palavras e controlador de adjetivos.
Um terceiro marinheiro entra na discussão, os outros continuam olhando em silêncio e remando.
            - Então a análise do nosso líder é baseada em títulos? Bem, não é exatamente o que vimos. Ele mente pra caralho...
            - Mente para nos salvar. Preferes ser um homem correto, honesto e morto? 
            - Os fins justificam os meios. - se meteu um.
          - Quem chamou Maquiavel? Esse cara fala muita merda. E pra te responder, prefiro ser um homem virtuoso, mesmo que isso faça de mim um homem morto nos dias de hoje.
            - Por que não uma mulher também? - falou o quarto marinheiro, que gostava de usar vestido e peruca. - Já que estão falando, não me calarei. Estou farto desse regime machista em que o  perfil ideal é ter barba, pelos no peito, corpo suado e músculos - e levantando-se atirou o remo longe -Essa concepção nada mais é do que uma forma dominadora e opressora de um poder que só nos sujeita. E porque os monstros que temos que matar são feios e têm um olho só? Sob a lógica de quem eles são feios? Respondo! De uma lógica burguesa e dominante. Para um cíclope, a estética facial de dois olhos é repugnante, assim como uma estatura diminuta. Somos nós os feios aos olhos deles, ou melhor, ao olho deles.
            - Eu disse que mulher no navio dá mal agouro. - reclamou um quinto.
            - Obrigada pelo reconhecimento, seu machista da porra.
            - De nada, agora senta e volta a remar. E cuide com os trocadilhos, por favor,Odisseu acordou...
Os homens e a mulher olharam de canto de olho para Odisseu, todos com as cabeças baixas.
            - Bom dia, homens! Está um belo dia para ver umas sereias, hein? Andei pensando melhor e não quero colocá-los em mais uma encrenca. Aqui tem a cera que Circe havia dito, podem colocar em suas orelhas, caso as sereias apareçam. 
Atirou o pote ao chão no canto e saiu.
             - E o senhor? - perguntou o primeiro marinheiro sem o pivô.
             - Eu? Ah, sim, eu...Eu não poderia deixar de lado essa oportunidade única de ouvir o canto das sereias. Afinal, sobrevivi à Troia e ceguei Polifemo, filho de Posseidon! Sou guardado pela própria Minerva e tenho uma bela e fiel esposa me esperando em Itaca com um filho já grande e, se puxar ao pai, esperto pacas...
             - "Esperto Parcas" - trocadilhou o sexto marujo, conhecido por suas piadas toscas, porém importantes para a sanidade da tripulação.
             - Mas, ó pirocudo Odisseu, não temes ser hipnotizado pelo canto das sereias?
             - Como ousa sugerir o temor em mim! Sou mais astuto que a morte e o temor. Aliás, notem que eu fiz uma troca silábica...É disso que estou falando, marinheiros! Músculos no cérebro!
             - Então, ó Magnânimo Odisseu das palavras ligeiras, poderás dividir com essa fútil e ignóbil tripulação o seu plano incompreensível entre os mortais assim como o vilão faz antes do herói ressurgir?
           - Prestem atenção e notem o plano arquitetado pelo gênio: enquanto vocês estiverem remando perfeitamente como se fosse o destino de vocês sempre fazer isso, eu ficarei esperando as sereias chegarem. Aí, quando eu as enxergar, darei o sinal para colocarem a cera. Assim vocês não ouvirão o canto mortal delas. Como eu sou um herói, e protagonista da Odisseia, naturalmente espera-se que eu não morra. Aí, quando conseguirmos passar, eu contarei para vocês a experiência que nunca poderão ter, um sinal de minha generosidade.
         - Parece um ótimo plano, capitão, por julgar sua esperteza - falou o marinheiro parecido com o Eric Idle, um dos integrantes do Monty Phyton. - Mas e se o senhor quiser nadar com elas?
              - Como assim? 
              - Bem,ahnnn... Elas são moças bonitas que fazem top less, filhas de pais com grana e carro importado, gostam de improvisar na cama e têm um canto capaz de hipnotizar um Aquiles, que no Olimpo esteja... Bem, capitão, se eu não tivesse com a cera, eu mergulharia, com o perdão do trocadilho.
              - Entendo. Mas mergulhar é morte certa...
              - E da morte o senhor não tem temor, capitão.
              - Exatamente... 
            - Bem, ahnnn... talvez se o senhor e toda a sua inteligência pensassem em... algo que impedisse isso... que o prenda ao navio... 
              - Uma televisão? - disse um 
              - Tipo uma corda? - perguntou outro marinheiro com bigode
              - Tipo isso. - disse outro.
              - Uma corda só conseguirá segurar Odisseu se for bem amarrada. - comentou outro.
              - Sabem o que segura mais do que uma corda? Uma corda bem grossa com vários nós firmes.
              - E o nó de marinheiro é o nó mais firme que se pode dar.
              - E nós somos muitos marinheiros, imagem quantos nós podemos dar!
          - Esperem aí, homens! - bradou Odisseu - Se vocês estão pensando que irão me amarrar para ouvir o canto das sereias e não vão mais remar podem tirar o cavalo da chuva!
              - Oh, não, capitão. Não iremos parar de remar não. Nós só seguimos ordens.                        - Assim está melhor. E por falar em melhor, eu tive uma ideia: para evitar motins, vocês me amarram bem no mastro principal e depois, só depois, colocam a cera. Aí eu poderei ordenar algumas coisas antes de começarmos...
              - Ok, capitão.
              - Sim, senhor, capitão.
              - Tá.
              - Sim, senhor.
E assim foram até chegarem as sereias. Como combinado, os homens e a mulher amarraram Odisseu no mastro principal para evitar que o canto das sereias fosse fazê-lo cair ao mar. Após, Odisseu ordenou a sua tripulação que colocasse a cera nos ouvidos e deu o último alerta.
               - Não importa o quanto eu grite, homens, não me desamarrem.
A tripulação toda ficou em silêncio ao ouvir essas palavras. O primeiro marujo respondeu com maior firmeza a ordem que o mais puxa saco e fiel de todos.
               - Sim, meu capitão!
E assim foi. Odisseu gritou e gritou, suplicou e suplicou, angustiou e angustiou até o navio conseguir passar pela parte perigosa.

E então.
               - Muito bem, homens! Conseguimos. Agora, podem me soltar.
Ninguém ouviu. Continuaram a remar.
               - Homens! HOMENS!!!
Nada
               - Caralho, gente, essa cera é vagabunda, não é tão forte assim!
               - Ouviram alguma coisa? - perguntou um
             - Sim - respondeu outro - Acho que vem uma tempestade. Os ventos estão soprando mais forte. Se endireitarmos o navio para bombordo poderemos ter sorte e colocá-lo a sotavento. 
               - São ventos da mudança!
               - Eu sempre quis conhecer Bora-Bora.
               - Bora lá!


Matheus I. Mazzochi 

quinta-feira, julho 31

Lázaro e a Morte

Lázaro recém havia chegado de seu trabalho. Após fechar a porta, atirou, como de costume, sua chave do carro na mesa da sala. Fungou e pensou no que iria preparar para se alimentar. Antes, porém, deveria ir ao banheiro, atirar uma água em seu rosto repleto de impurezas da rua e suor seco de um  dia duro de trabalho. Foi então que segurou a maçaneta da porta do banheiro e, ao tentar abrir a porta, não conseguiu. Estranho. Será que emperrou? foram seus pensamentos. Tentou mais uma vez. Ué, mas parece que está trancada por dentro. Impossível, não há ninguém mais nessa casa. Irritado, Lázaro forçou a porta, como se fosse arrombá-la e eis que sua espinha arrepiou e seus pelos ouriçaram: uma batida vinda de dentro ecoou seca na madeira da porta.

- Tem gente!

Que porra é essa? Como é que pode se eu vivo sozinho? Antes mesmo que a mente limitada de Lázaro conseguisse compreender o que estava acontecendo, o barulho de descarga fez seus olhos voltarem a encarar a porta. O trinco se fez ouvir. A maçaneta inclinou para baixo e a porta se abriu. Lázaro, com seus olhos fechados pela luz vinda de dentro, pode ver um vulto negro sussurrar:

- Ah...perfeito...
- Quem e o que é tu? - disse Lázaro com os olhos arregalados.
- [À parte] Como é que eu vou explicar isso... EU SOU A MORTE, LÁZARO LÁZARO LÁZARO! AJOELHE-SE DIANTE DE MIM MIM MIM E TREMA SOB MEU PODER ER ER! -bradou a Morte com seu indicador ossudo no rosto dele.
- Caralho, que porra é essa? O que a Morte estava fazendo no meu banheiro?
- EU VIM DE LONGE ONGE ONGE, PARA TE PEGAR AR AR!
-Não parece. Veio de longe pra usar o meu banheiro isso sim.
- Bem, isso é constrangedor, sabia? - respondeu tristemente a Morte, agora do mesmo tamanho de Lázaro, pois antes estava três vezes maior. - Eu não tenho culpa se tu decidiu se atrasar pro nosso compromisso. Aliás! - E puxou um pergaminho - Tu tens uma fama de atrasos que vou te dizer, hein...Por onde eu posso começar? - E puxou de seu bolso negro um óculos também negro com um cordão de pérolas escuras entre os apoios da orelha. - Começa que você nasceu depois do previsto pelo médico. Também tenho aqui que começou a andar e a falar bem depois da maioria das crianças de sua idade. Hm... olha quem falando...aqui eu tenho que você só aprendeu a usar o que vocês chamam de banheiro aos 4 anos. Rapaz, tu és o atraso em carne e osso!
- O que está acontecendo aqui, afinal? Isso é uma piada? Hoje nem é meu aniversário e o Pablo e o Guto estão ainda na praia! Isso não é uma peça, é?
- Lázaro - disse em tom sério a Morte, tirando os óculos. - Dessa vez, você terá que cumprir o horário.
- Do que você está falando?
- Eu sou a Morte, Lázaro. Eu vim aqui pegar sua alma e te levar para um outro plano. Seus trabalhos foram, digamos assim, reconhecidos e ficamos muito satisfeitos pelo o que fizestes aqui. Entretanto, não leve pro pessoal, a diretoria decidiu redirecioná-lo.
- Está dizendo que eu estou morto?
- Tecnicamente, não. Eu preciso tocá-lo para concluir a passagem e, para isso, tu precisas me dar a mão.
- Como?
- Tu precisas me dar a mão.
- E se eu não quiser?
- Todo homem e toda mulher é regido pela mesma Lei, Lázaro. E essa Lei está na tua frente. Você quem decide se quer me dar a mão ou não, mas te digo que a partir do momento em que um mortal vê a morte, ela não mais o deixa em paz. Até o momento em que ele queira essa paz.
- Tu vais ficar me apurrinhando até eu desistir é isso? Me enchendo o saco depois de usar meu banheiro para que eu pegue na tua mão fria e ossuda. Vem cá, tu limpou a mão, pelo menos?
- Lázaro, teu senso de humor é ímpar e inigualável. Vocês, humanos, têm um mecanismo de defesa muito inteligente e belo. Usar o humor como forma de encarar ameaças, tristezas, ódios... É bela essa transmutação mental que utilizam.
- Do que tu tá falando?
- Infelizmente, leva um tempo para compreenderem tudo. Lázaro, como eu posso tornar isso mais fácil? Eu sou o fantasma do Natal passado e vim aqui prestar contas.
- Eu entendi o que tu falou desde o início. Só não entendi como a Morte veio parar no meu banheiro, isso não é lógico! Não é racional! Não está nem na Bíblia, porra! Isso não faz nenhum sentido: eu chego em casa, vou ao banheiro e, ao abri-lo, dou de cara com a Morte! Sabe como isso é difícil para mim? Nem Deus, Bhuda, A-lá, nada...O ceifador em osso!
- Lázaro, todo mundo tem sua hora. A sua, apesar dos teus atrasos, chegou. Infelizmente, como é do teu feitio, demoramos um pouco. Era para estar morto há uns - olhou no seu relógio de areia - 20 minutos, segundo a concepção de tempo de vocês.
- Concepção de tempo nossa?
- É. Veja, o tempo é algo relativo, entende? Vocês, humanos, inventaram formas inteligentes, devo admitir, de medir o tempo ao redor de vocês. Criaram o calendário com base em leituras estelares e observando fenômenos naturais e celestes. Vocês avançaram e muito. A merda foi quando colocaram isso numa máquina.
- Por quê?
- Porque essa máquina não mede o tempo, Lázaro! Ela mede o seu tempo. O tempo dela nela mesma, não o tempo ao redor dela. Hoje vocês dizem que a Primavera, como batizaram o renascer natural, começa em Setembro mesmo vendo que a Natureza volta do sono de três meses em Agosto! Vocês ficaram toscos e isso é uma poeira do que quero dizer.
- E onde entra tu cagando no meu banheiro?
- Bem, era para tu estares aqui há 20 minutos! Sabe como é ficar esperando e esperando... Agora eu terei que dar explicações lá em cima!
- Tu diz Deus?
- Para ti é, se fosses de outra crença, seria de outro nome. Eu tenho um chefe, entende? Eu tenho metas a serem cumpridas! Teu atraso pode ter feito com que eu não consiga minha promoção premiun!
- Espera aí! Metas? Promoção Premiun? Morte, quer dizer que depois da vida as relações continuam as mesmas?
- O que você não sabia? E vocês acham que tiraram da onde essa forma de conviver? Vocês criaram? Não me faça rir. Vocês, humanos, recriam tudo o que existe no Universo. É claro que existem metas e prazos e cronogramas e organogramas e hierarquias e normas e protocolos e papeladas e carimbos e tudo...
- Que saco...
- É... E eu posso ser rebaixado com esse atraso, sabia? Eu deveria pegar sua alma e depois a de um adolescente bêbado na freeway, mas vejo que ele teve sorte hoje....
- E está tudo definido? Digo, tu sabes quem vai morrer amanhã?
- Não. Nós recebemos nossas demandas, digamos assim, com, no mínimo, 24h de antecedência. Como para nós o tempo não flui, ele trabalha de outra maneira e nós que fluímos nele, pode-se dizer que eu sei quem vai morrer hoje.
- E o livre-arbítrio! Onde fica? Vai me dizer que não tem?
- Tem, cara, tem... Vocês humanos ficam gritando e choramingando por tudo! Eu acompanho a evolução de vocês. Qualquer mal entendido vocês fazem birra. Vocês misturam muito o ego de vocês com questões humanitárias. Fazem guerras clamando por questões nobres, para ter um apoio maior, mas só querem dormir com um sorriso pessoal. Vocês reclamam muito e agradecem pouco. Deveriam saber o que aconteceu do Outro Lado para vocês serem assim... Isso eu chamo de guerra...Foi uma loucura... cortaram nossas férias e tivemos que fazer horas extras! Enfim... O livre-arbítrio existe para quem quer.
- Não entendi.
- Apesar de ninguém ter perguntado a vocês se vocês queriam o livre-arbítrio, vocês o tem. E, mesmo depois de tê-lo, não agradecem nem reclamam. Fica buscando o próprio rabo querendo discutir o sexo dos anjos. Se vocês acha que tem, você tem. Faze o que tu queres, pois está tudo na Lei. Abrir mão dele e virar um escravo também faz parte de exercer o livre-arbítrio.
- Então sou livre, menos para querer abrir mão de minha liberdade?
- Exatamente. Pois quando o faz continua o sendo.
- Isso não faz sentido....
- Faz. Mas não da maneira como vocês, humano, compreendem o sentido das coisas. Como tu estás morto, prestes atenção no que eu vou lhe revelar....

Matheus I. Mazzochi

 

terça-feira, julho 1

Moisés

Era um templo feito de gelo. Paredes longas erguendo-se aos céus de maneira majestosa e infinita como a esperança humana.
Símbolos, muitos símbolos. Tantos quanto pode a imaginação imaginar.
Uma suave penumbra azulada era gerada pelo altar no fundo do templo.
Festa. Tinham pessoas lá, alegres, bebendo, rindo e fazendo amor. Um porão da existência humana liberto da repressão que existia na sala de estar.
Eis que, em meio ao bacanal, abre-se a porta marrom e uma sombra diabólica é vista. Tão grande quanto, sua sombra no chão impõe-se como se estivesse querendo pegar nossos pés e nos derrubar. Levanta algo parecido como um cajado e começa a cantarolar uma música de linguagem desconhecida. De seu cajado, labaredas começam a sair gerando um círculo que queima todo o ambiente. O gelo torna-se menos denso (invisível) e pode-se olhar que há terra no lado de fora como se estivéssemos enterrados dentro dele. Todos começam a correr e alguns até a se transformar em criaturas horripilantes, gárgulas e demônios. Em meio à multidão, corro e escuto o misterioso ser a falar seus decretos:
1-      Nunca prometa algo a alguém
2-      Não falseie uma verdade
3-      Mude a si mesmo antes de querer mudar o mundo
4-      Que toda a promiscuidade seja transformada em pó por quem lhe é de direito
5-      Amor sob Vontade
6-      Não mate
7-      Que a purificação se concluía diante daqueles que estão sob minha proteção

Num átimo, saltei pela cortina de fogo que se formou na porta, buscando a saída. Quando caí no chão ajoelhado, vi que havia uma porta medieval fechada de onde eu saí e que diante de mim estava o estranho ser.
Pés descalços, roupão cinza estilo filósofo grego, barba grisalha gigante e olhos pequenos repleto de olheiras. Rugas, muitas rugas havia em seu rosto, como se o vento frio lhe tivesse cortado a pele e feito sua marca nele. Empunhava um cajado de carvalho que tinha 2/3 a mais de altura que ele. Em seu ombro esquerdo, havia um corvo preto azulado.
- Quem és tu? – perguntei de joelhos.
E assim ele respondeu:

- Meu nome é Moisés, mas, em todo caso, o escravo não é gerado pelo lucro ideal.

Matheus I. Mazzochi


segunda-feira, abril 21

Rorschach, sempre

Carne Viva: Vou nessa. Agora, faz o que tem que fazer, Sortudo... eu não preciso assistir. Tenho uns crimes para cometer. [sai]

Sortudo: Eu quero saber o seu nome. Se não me contar, vou começar a "fazer o que tenho que fazer" arrancando a língua da tua boca. E, depois, vou me divertir pra valer.

Rorschach: Vi...

Sortudo: "Vi"? Você não se parece com um Vi. Tá mais para Howard. Mas, Vi, é o seguinte... não entendo essa parada de justiceiro. Tipo, qual é a tua nisso tudo? Entendeu? Se tu me contar... eu não vou te matar. Porque, mano, cê já tá morto. Muito morto. Mas tu não quer que alguém saiba por que "cê faz o que faz"? Acho que ia ser importante... pra um Howard como você. Então, me conta ou ninguém vai ficar sabendo. Você simplesmente vai sumir e ser esquecido. Me conta... Por quê? Porra... Puta merda... Você não sabe por que, né, Vi...

Rorschach: ... Tima.

Sortudo: Ví...Tima? Você simplesmente faz, tipo, uma porra dum animal...

Rorschach: Eu não sou você.

Antes de Watchman - Rorschach.
DC comics

terça-feira, março 25

O Porteiro

Maldito porteiro.

Rapaz mais caricato impossível. Sempre trazendo assuntos que tentamos esquecer, ignorar e virar o rosto. Não quero saber mais de injustiças, desigualdades, repressões e mentiras. Quero a liberdade e a tranquilidade dos ignorantes alienados, pois são felizes. O sorriso deles é mais puro que o meu, por ser um sorriso não forçado.

O porteiro vem reclamar de sua vida e do mundo para mim como se eu fosse o responsável ou como se eu fosse resolver seus problemas. Porteiro, mal consigo resolver os meus... Entro rapidamente no elevador. Fujo. (Nunca ele havia demorado tanto). E, num alívio silencioso, vejo a porta ser segurada pela mão gorda e suada do porteiro. Mão gosmenta de pura realidade fétida.

Ele conta suas histórias...

Conta onde mora, conta dos 2 ônibus horríveis que pega às 5h para trabalhar 10h para ganhar um salário que dura 3 semanas, quando se priva do luxo: o churrasco de domingo.

Sinto nojo e raiva dele. Sinto nojo e raiva de mim. Sinto nojo e raiva deu sentir nojo e raiva de um homem que me obriga a ver a realidade que quero fugir inutilmente.

Ele reclama do policial. Diz que eles se esquecem que também são cidadãos por baixo da farda. Gozado como esquecemos que eles também são seres humanos e, por serem, também acreditam em algo. Ou não... Ideologias, mesmo sendo defendidas pela maioria, não passam de ideologias. Ora são dominantes, ora emergentes. A realidade é um consenso coletivo em seu apogeu do delírio momentâneo de sua existência no presente.

A porta se fecha e no elevador 3x4 fico só e, finalmente, em paz. Só eu e o espelho. Sacanagem inventarem uma caixa 3x4 com espelho e colocar um cidadão lá. Ele com ele mesmo num desconforto, encarando-se e se cobrando.

Porteiro, por que me deixaste?

Rapaz mais caricato impossível. Sempre trazendo assuntos que tentamos esquecer, ignorar e virar o rosto.

Matheus I. Mazzochi

domingo, março 23

Origens

Eu me lembro de uma pessoa com muito carinho.
Essas pessoas que entram repentinamente em nossas vidas, chacoalham-na e vão embora falando pouco conosco, mas um pouco que é demais. Essas pessoas que nós vemos a cada 5 anos por ironias do destino. E foi exatamente assim que a revi. Sentado, relaxando no degrau da escada na frente de um prédio qualquer, ele passou por mim sorridente e já me reconheceu. Abraçamos-nos e conversamos atualizando uns aos outros, como se fôssemos velhos amigos... Somos velhos conhecidos, vizinhos e colegas. A saudade de um tempo que passou apareceu em nossos olhos e nas palavras de despedida.
E foi assim. Depois de um ano voltou a falar comigo. Conversamos sobre poesia e sobre mulheres. No final, é tudo igual. Comentou-me de um sonho dele, dividi um meu. Incentivos por parte de ambos para os dois sonhos. Finalmente, ele disse as palavras que até hoje levo comigo como tábuas da Lei:
“Sinceramente, cara, um escritor que escreve só para si e não publica é um escritor egoísta.”
Flecha certeira, palavras afiadas e mortais. Expus o medo; ele, a coragem. Decidi seguir o caminho e aceitar o chamado.
Criei o blog que sempre me lembrará daquela noite inesquecível.
Depois desse dia, só o vi saindo do mercado da rua que somos vizinhos.
Há 3 anos não o vejo.


Incrível como há pessoas que mudam nossas vidas.

Matheus I. Mazzochi

Equinócios (oração)

Outono, sejas bem-vindo com sua beleza amarronzada,
Com sua beleza equilibrada.
Venhas com essa presença amena, leve a ideal,
Sem demasias e excessos,
Sem o mais e pouco do menos,
Sem o muito e menos do pouco.
Entras, Outono, na casa do meu ser,
Retirando da colheita as folhas que ocupam espaço.
Espaço para as próximas que estão por vir.
Período de colheita antes do inverno, antes do fim,
Antes do começo do recomeço primaveril.
Ó, Equinócio, mostra para mim o equilíbrio da Natureza e,
Por ser eu mesmo a Sua manifestação,
Mostre para mim o equilíbrio do meu Ser.

Matheus I. Mazzochi

Alertas da vida

"O quadro mais nítido de uma vida vazia é o do homem suburbano, que se levanta à mesma hora todos os dias, toma o mesmo trem para trabalhar na cidade, executa as mesmas tarefas no escritório, almoça no mesmo restaurante, deixa diariamente a mesma gorjeta para o garçom, volta pra casa no mesmo trem, tem dois-três filhos, cuida de um pequeno jardim, passa duas semanas de férias na praia todo verão, férias que ele não aprecia, vai à Igreja no Natal e na Páscoa, levando assim uma existência rotineira, mecânica, ano após ano, até finalmente se aposentar aos sessenta e cinco e morrer, pouco depois, do coração, num colapso causado talvez por hostilidade recalcada. Sempre suspeitei, porém, que morre mesmo de tédio."

Rollo May, O homem à procura de si mesmo.


quinta-feira, fevereiro 6

Fervereiro

O despertador tocou na mesma hora em que toca todos os dias. Acordei exatamente como fui dormir: suando. Mais um dia de calor. Eu estava grudado na cama. Lençol e corpo como sendo um só. Quando me levantei, lembrei das mulheres que se depilam usando cera quente. Quem visse de longe também se lembraria. Fui tomar banho crendo inutilmente que iria me refrescar. Expectativas. Elas podem acabar com você, mas sem elas a vida não tem sabor. Como um pudim de xuxu. Saí do chuveiro exatamente como entrei: molhado. Minha querida cidade está quebrando altos recordes todos os dias. Que orgulho que tenho dela...Pelo menos os repórteres mencionam a notícia com a alegria refrescante de seus ar-condicionados.

Tomei o mesmo café da manhã que tomo todos os dias e fui para o mesmo local de estágio que vou todos os dias. Passei pelos mesmos funcionários nordestinos que aguentam esse calor de 57ºC para reformar o Hospital do Bairro. Atirados ao chão, dormindo nas sombras do muro projetadas pela angulação ideal dos raios de Sol nesse dia de Inferno, como se fossem pecadores relaxando de suas penitências carnais. Passo pelo jardim de entrada do estágio e vejo dois Quero-Quero imitando os nordestinos que vi a duas quadras. A única diferença é que eles estavam sobre um dos pés, pelo calor do solo... Não... A única diferença é que eles não cantavam "QuÉro-QuÉro..." Isso... Essa é melhor.

Chego ao estágio exatamente como saí: suando. As mulheres se abanavam com folhas ou pastas como se fossem Cleópatra no deserto. Escuto as mesmas reportagens e leio as mesmas notícias há 10 dias. "E ainda hoje: a greve no transporte público, saiba até quando vai durar; falta luz nas cidades da Região Metropolitana; falta água em alguns pontos da cidade; Porto Alegre bate mais um recorde de temperatura e hoje é o dia mais quente do ano; Atenção redobrada nas estradas, os acidentes na Freeway; O Grêmio mais uma vez não vence fora de casa..." 

É como se o tempo tivesse parado. Como se os ponteiros dos relógios e suas engrenagens tivessem derretido em meio à alta temperatura sob o céu azul infinito, um céu de azul infinito semelhante ao azul do fogo de uma boca de fogão. Os carros nas ruas engarrafam-se e o trânsito sempre está parado. Semáforos ficam no amarelo cor de Sol. O horizonte está trêmulo e derretido. As pessoas estão sufocando em seus suores de medo e tristezas. O bafo do ar quente nos devolve o que queremos esquecer: a nossa evolução destrutiva do meio-ambiente. Lembro-me de quando eu era uma criança e queimava as formigas com uma Lupa. Hoje não acho mais graça. As coisas perdem a graça quando tu passa a ser a formiga e não o cara que as queima.

E ao meio-dia, olho na televisão as mesmas reportagens de ontem, hoje e amanhã: a greve no transporte público, saiba até quando vai durar; falta luz nas cidades da Região Metropolitana; falta água em alguns pontos da cidade; Porto Alegre bate mais um recorde de temperatura e hoje é o dia mais quente do ano; Atenção redobrada nas estradas, os acidentes na Freeway; O Grêmio mais uma vez não vence fora de casa...

Parece que alguém lá de cima desistiu e entrou em greve exigindo uma melhor criação para gerenciar. As Parcas largaram de tecer o tapete do destino e o mundo, assim como o tempo, está preso em uma fenda atemporal e contínua. A música do Universo trancou e só repete o mesmo acorde.

O mesmo teimoso e ardente acorde:

Sol Maior.

Matheus I. Mazzochi

segunda-feira, janeiro 27

Dois Homens e o Mar

São sete e meia da noite. O Sol se põe gentilmente atrás das casas, atrás de nós e atrás das nuvens no horizonte oposto como uma pessoa que se agacha para juntar algo que deixou cair. Fachos de cortinas de luz que parecem ser a anunciação de que deus está chegando para nos salvar escorregam das nuvens. Ele vai nos salvar de nós mesmos. O céu é colorido por pinceladas curiosas de tons gradativos de amarelo, laranja, rosa e vermelho feitos pelo Sol como um pintor experimentando e conhecendo suas tintas a cada pincelada que faz. O Astro Rei decora seu quadro sobre nossas cabeças e ninguém se importa. Ninguém para para ver e contemplar. Na praia, pessoas de férias correm para um lado e para o outro igual como fazem na cidade quando estão atrasadas para a reunião inútil. Três crianças jogam futebol com uma bola velha no país da copa, driblando-se infinitamente, girando entre seus próprios eixos como pássaros e borboletas se amando. Procuram por dois gravetos para chutar entre eles a bola e gritar gol. A bola quica perto de nós dois e o desconforto aumenta junto com a maré. A areia está úmida e fria como nossas almas; e o mar, violento e indomável como nossos sonhos. A dormência na gengiva causada pela embriaguez nos faz sentirmo-nos mais leves. A insustentável leveza do ser.

São dois homens trocando histórias e opiniões. Falando sobre o que são, o que não querem ser e sobre o que esperam ser. Palpites e conselhos. Um deles aconselha o outro a resolver problemas iguais aos seus sem saber disso. A velha projeção. A velha autoenganação. Se conselho fosse bom, não seria de graça, dizem. Ironia. A vida é cheia de ironia. A vida tem dessas. Seu alfabeto está nas sombras do poente e para ler suas histórias devemos aguentar essa escuridão e o desespero em estar lá. Hora do mergulho. Damos um. Dois. Incontáveis mergulhos. Boiamos e esquecemos de como é o peso de nossa existência. Leves e livres até uma onda violenta de realidade acabar com nossos sonhos ingênuos e nos engolir. Há areia em todo o corpo e água nos ouvidos. Por um breve momento, o silêncio do limbo é o único som que ouvimos. Aí, escutamos nossa própria respiração e o nosso próprio coração a bater. O mar está salgado. Salgado como o suor de nossos trabalhos em teimar em ir para frente buscando realizar nossos desejos e sonhos. Salgado como as lágrimas contidas nas baforadas dos cigarros. Uma onda pode te transformar. Não é a toa que a água representa o batismo: a ligação desse mundo com o outro.

Olhamos para trás e nos despedimos do mar. Lá longe, no infinito, céu e mar se unem. Vemos a liberdade e a novidade navegarem juntas. Novos mundos a serem desbravados pelo navegar em meio à neblina e à névoa do desconhecido. Sensação igual de ver o calendário do novo ano: 365 episódios novos para se ver o que vai acontecer de interessante em nossas vidas nessa nova etapa. Esperança e votos de realizações. Muitas expectativas imprecisas sobre o novo ano.

Juntamos as coisas e voltamos para o acampamento. Rumamos alegres, esperançosos e bêbados pelo meio fio da calçada em silêncio sorridente. Com o pôr-do-sol, estrelas surgem no céu como pontos...

Reticências do amanhã.

Matheus I Mazzochi


Toda grandeza mortal não é mais do que doença.

 " (...) E quando tais características se unem num homem de força grandemente superior, a uma cérebro globular, e um coração austero, num homem que, além disso, pelo sossego e reclusão de muitas longas noites de guarda nas mais remotas águas e sob constelações jamais vistas no norte, é levado a pensar de maneira independente e sem preconceitos, quando depois de receber todas as impressões doces e violentas da natureza, acabadas de sair do seu peito virgem e confidencial, e portanto principalmente e apenas com o auxílio de vantagens acidentais, se sente inclinado a aprender uma linguagem intrépida, altivamente nervosa, então esse homem é único no meio de toda uma nação, uma poderosa e magnífica criatura, formada para nobres tragédias. Considerando-o ainda do ponto de vista mais dramático, não chegaria a ser motivo de humilhação, para o caráter de um tal homem, o fato ingênuo, ou devido a outras circunstâncias, de um certo desejo mórbido e semi-involuntário de mando. Oh, ambição juvenil, toda grandeza mortal não é mais do que doença! (...)"

Herman Melville,
Moby Dick


segunda-feira, janeiro 13

Diário de Rorschach, 11 de Julho de 1982.

Exatamente cinco anos atrás, a cidade mostrou sua verdadeira face. Irônico. Luzes apagadas expuseram o fingimento, agarraram a sociedade pela nuca e meteram sua cara no espelho. Circunstância complicada, quando o próprio reflexo não é como a gente se vê...mas como a gente vê aos outros. Quando as luzes voltaram, os condenados retomaram rapidamente sua rotina de teimosia sutil. Rastejando pela rua morosamente, tentando esquecer. Temendo o contato olho no olho. O lampejo de reconhecimento. Você é exatamente como eu. Eu sei o que você faz no escuro. Cinco anos atrás. A noite do meu último erro... o Bardo cometeu o primeiro dele. Apesar de ter a garganta cortada, a vítima sobreviveu. Nas trevas, agindo em espaço aberto, Ronald James Randall foi descuidado. A vítima o identificou. Ficou atrás das grades por quase três anos antes de ir a julgamento. Vítima testemunhou. Promotoria inepta ainda assim conseguiu pisar na bola. Ronald James Randall foi inocentado. Por um júri de seus pares. Típico. Sociedade se recusa a tomar medidas necessárias para se salvar de si mesma. Eu não. Eu sei o que ele fez no escuro. Eu sei onde ele mora. Paradeiro da vítima desconhecido. Daquela vítima. Supostamente, deixou a cidade para ser vítima em outro lugar. Ela e suas cicatrizes. Não dá para escapar da verdade nua e crua quando ela foi entalhada no seu peito... "Você merece".

Antes de Watchmen - Rorschach
DC Comics
Panin Comics