Dizem as boas línguas que Odisseu, filho de Laertes, foi o humano mais
inteligente que pisou neste mundo; e dizem as más, que ele não foi filho de
Laertes, mas, sim, de Sísifo, também considerado o mais inteligente. Naquela
época o que mais tinha era gente inteligente (e fofoca). Odisseu era tão
inteligente que a própria deusa da sabedoria, Minerva, descia do Olimpo pra
bater um papo com ele. Trocar um lero. Coisa pouca.
Foi Odisseu quem deu a ideia de construir o famoso Cavalo de Troia,
registrando nos anais do tempo a existência da zuera no período clássico.
Pois
bem, apesar de inúmeras as histórias que o louvam, poucas sãos as que não. E
há. Pois se Odisseu é considerado o mais brilhante de todos os mortais, que dirá de sua tripulação? Essa é a famosa história do motim contra Odisseu ou, como alguns contam, o dia
em que a tripulação de Odisseu foi mais esperta que ele.
Odisseu e sua tripulação estavam
voltando da vitoriosa guerra contra os troianos, depois de ter dado uma parada
na ilha de Circe, quando um marujo sem o canino esquerdo e de olho fechado
avisa a todos de que reconhecia o caminho que estavam navegando.
- Eu reconheço o caminho que estamos navegando - disse ele. - É o
caminho da incoerência.
Seus colegas ficaram olhando para ele,
enquanto todos continuavam a remar.
- Estamos perdidos nessa névoa, com fome, sono e sem vinho. Remando como
condenados sem enxergar um palmo a frente, colocando nossas vidas em perigo em
meio a essas rochas salgadas e cheias de pontas afiadas. A praia de Troia era
mais segura durante a guerra que esse caminho.
- Odisseu é esperto, ele deve saber para onde estamos indo. - disse em
tom leal um puxa saco.
- Bem, de fato ele é, já o viu alguma vez remar?
- O que está insinuando?
- Não estou insinuando nada, estou dizendo a verdade. - e voltando-se
aos outros - Odisseu é esperto demais para remar...se é que me entendem. Ele
tem uma vida bem cômoda e eu não creio ser o único que ficou puto quando ele
furou Polifemo e fodeu com a gente.
- Ele nos salvou, homem!
- Não. Ela não nos salvou. Ele se salvou e nós sobrevivemos por estarmos ao lado dele. Que
tipo de líder é esse? E te digo mais, ele dorme muito para um herói de guerra.
- Odisseu é o mais esperto de todos os mortais, homem. Não é a toa que
ele tem o título de sábio das palavras e controlador de
adjetivos.
Um terceiro marinheiro entra na
discussão, os outros continuam olhando em silêncio e remando.
- Então a análise do nosso líder é baseada em títulos? Bem, não é
exatamente o que vimos. Ele mente pra caralho...
- Mente para nos salvar. Preferes ser um homem correto, honesto e
morto?
- Os fins justificam os meios. - se meteu um.
- Quem chamou Maquiavel? Esse cara fala muita merda. E pra te responder,
prefiro ser um homem virtuoso, mesmo que isso faça de mim um homem morto nos
dias de hoje.
- Por que não uma mulher também? - falou o quarto marinheiro, que
gostava de usar vestido e peruca. - Já que estão falando, não me calarei. Estou
farto desse regime machista em que o perfil ideal é ter barba, pelos no
peito, corpo suado e músculos - e levantando-se atirou o remo longe -Essa
concepção nada mais é do que uma forma dominadora e opressora de um poder que
só nos sujeita. E porque os monstros que temos que matar são feios e têm um
olho só? Sob a lógica de quem eles são feios? Respondo! De uma lógica burguesa
e dominante. Para um cíclope, a estética facial de dois olhos é repugnante,
assim como uma estatura diminuta. Somos nós os feios aos olhos deles, ou
melhor, ao olho deles.
- Eu disse que mulher no navio dá mal agouro. - reclamou um quinto.
- Obrigada pelo reconhecimento, seu machista da porra.
- De nada, agora senta e volta a remar. E cuide com os trocadilhos, por
favor,Odisseu acordou...
Os homens e a mulher olharam de canto
de olho para Odisseu, todos com as cabeças baixas.
- Bom dia, homens! Está um belo dia para ver umas sereias, hein? Andei
pensando melhor e não quero colocá-los em mais uma encrenca. Aqui tem a cera
que Circe havia dito, podem colocar em suas orelhas, caso as sereias
apareçam.
Atirou o pote ao chão no canto e saiu.
- E o senhor? - perguntou o primeiro marinheiro sem o pivô.
- Eu? Ah, sim, eu...Eu não poderia deixar de lado essa
oportunidade única de ouvir o canto das sereias. Afinal, sobrevivi à Troia e
ceguei Polifemo, filho de Posseidon! Sou guardado pela própria Minerva e tenho
uma bela e fiel esposa me esperando em Itaca com um filho já grande e, se puxar
ao pai, esperto pacas...
- "Esperto Parcas" - trocadilhou o sexto marujo,
conhecido por suas piadas toscas, porém importantes para a sanidade da
tripulação.
- Mas, ó pirocudo Odisseu, não temes ser hipnotizado pelo canto
das sereias?
- Como ousa sugerir o temor em mim! Sou mais astuto que a morte e
o temor. Aliás, notem que eu fiz uma troca silábica...É disso que
estou falando, marinheiros! Músculos no cérebro!
- Então, ó Magnânimo Odisseu das palavras ligeiras, poderás dividir com
essa fútil e ignóbil tripulação o seu plano incompreensível entre os mortais
assim como o vilão faz antes do herói ressurgir?
- Prestem atenção e notem o plano arquitetado pelo gênio: enquanto
vocês estiverem remando perfeitamente como se fosse o destino de vocês sempre
fazer isso, eu ficarei esperando as sereias chegarem. Aí, quando eu as
enxergar, darei o sinal para colocarem a cera. Assim vocês não ouvirão o canto
mortal delas. Como eu sou um herói, e protagonista da Odisseia, naturalmente
espera-se que eu não morra. Aí, quando conseguirmos passar, eu contarei para
vocês a experiência que nunca poderão ter, um sinal de minha generosidade.
- Parece um ótimo plano, capitão, por julgar sua esperteza -
falou o marinheiro parecido com o Eric Idle, um dos integrantes do Monty
Phyton. - Mas e se o senhor quiser nadar com elas?
- Como assim?
- Bem,ahnnn... Elas são moças bonitas que fazem top less, filhas de
pais com grana e carro importado, gostam de improvisar na cama e têm um canto
capaz de hipnotizar um Aquiles, que no Olimpo esteja... Bem, capitão, se eu não
tivesse com a cera, eu mergulharia, com o perdão do trocadilho.
- Entendo. Mas mergulhar é morte certa...
- E da morte o senhor não tem temor, capitão.
- Exatamente...
- Bem, ahnnn... talvez se o senhor e toda a sua inteligência
pensassem em... algo que impedisse isso... que o prenda ao navio...
- Uma televisão? - disse um
- Tipo uma corda? - perguntou outro marinheiro com bigode
- Tipo isso. - disse outro.
- Uma corda só conseguirá segurar Odisseu se for bem amarrada. -
comentou outro.
- Sabem o que segura mais do que uma corda? Uma corda bem grossa
com vários nós firmes.
- E o nó de marinheiro é o nó mais firme que se pode dar.
- E nós somos muitos marinheiros, imagem quantos nós podemos dar!
- Esperem aí, homens! - bradou Odisseu - Se vocês estão pensando
que irão me amarrar para ouvir o canto das sereias e não vão mais remar podem
tirar o cavalo da chuva!
- Oh, não, capitão. Não iremos parar de remar não. Nós só seguimos
ordens. - Assim está melhor. E por falar em melhor, eu tive uma ideia:
para evitar motins, vocês me amarram bem no mastro principal e depois, só
depois, colocam a cera. Aí eu poderei ordenar algumas coisas antes de
começarmos...
- Ok, capitão.
- Sim, senhor, capitão.
- Tá.
- Sim, senhor.
E assim foram até chegarem as sereias.
Como combinado, os homens e a mulher amarraram Odisseu no mastro principal para
evitar que o canto das sereias fosse fazê-lo cair ao mar. Após, Odisseu ordenou
a sua tripulação que colocasse a cera nos ouvidos e deu o último alerta.
- Não importa o quanto eu grite, homens, não me desamarrem.
A tripulação toda ficou em silêncio ao
ouvir essas palavras. O primeiro marujo respondeu com maior firmeza a
ordem que o mais puxa saco e fiel de todos.
- Sim, meu capitão!
E assim foi. Odisseu gritou e gritou,
suplicou e suplicou, angustiou e angustiou até o navio conseguir passar pela
parte perigosa.
E então.
- Muito bem, homens! Conseguimos. Agora, podem me soltar.
Ninguém ouviu. Continuaram a remar.
- Homens! HOMENS!!!
Nada
- Caralho, gente, essa cera é vagabunda, não é tão forte
assim!
- Ouviram alguma coisa? - perguntou um
- Sim - respondeu outro - Acho que vem uma tempestade. Os
ventos estão soprando mais forte. Se endireitarmos o navio para bombordo poderemos
ter sorte e colocá-lo a sotavento.
- São ventos da mudança!
- Eu sempre quis conhecer Bora-Bora.
- Bora lá!
Matheus I. Mazzochi