Ele era um colorado fanático.
Sabia de cor a escalação de seu
time, sabia os anos dos títulos nacionais e internacionais que foram
conquistados, sabia a vida íntima dos jogadores e do técnico, conseguia ter
mais argumentos que qualquer gremista sobre futebol e, principalmente, sobre o Gre-Nal.
Pode parecer impossível, mas ele conseguia convencer o mais fanático tricolor a
vestir a camiseta nove do Inter. Era humilde e um piadista nato. Gostava de um
trago, pois ninguém é de ferro. Tão certo quanto o nascer do Sol no dia
seguinte eram os churrascos dominicais em sua garagem. Tinha olhos de águia e
sorriso de Mona Lisa. E era gente fina pra caralho...
Uma vez ajudou um amigo a
esconder seu carro. Disse que precisava por um tempo mantê-lo longe das ruas.
-
Mas não é roubado, né?
-
Não, não... Pode ficar tranquilo.
-
Não me arranja encrenca... Deixa ele ali na garagem.
-
Muito obrigado!
-
Mas todo Domingo tu tem que dar um jeito! Eu tenho que ter meu churrasquinho,
não é? – começou a rir.
-
Perfeito!
Só que na garagem havia o carro
da família. O amigo dele arrombou o carro da família para poder manobrá-lo,
afim de que os dois carros pudessem caber na pequena garagem usada para
reuniões familiares. Ele arrombou,
ligou, tirou da garagem, estacionou fora e saiu; entrou no dele, ligou, colocou
na garagem e saiu; voltou a entrar no carro da família, ligou e estacionou
apertadamente, fazendo um ficar atrás do outro na garagem do churrasco.
Como dissemos, era gente fina.
Certo dia adoeceu. Câncer. Os
médicos diziam que ele não conseguiria sobreviver por muito tempo. Se a químio
resolvesse algo, teria que viver entubado, praticamente. Quando ele foi avisado
pelos profissionais da saúde sobre seu prognóstico, ele virou o rosto para a
parede em silêncio e abanou com a mão pedindo para saírem. Fazia muito que não
tinha seu churrasco, seus gritos e risadas com os amigos e sua cerveja gelada
nos finais de semana de Inter contra algum time do Sudeste do Brasil. Apesar da
situação: sem voz, fraco, magro e anêmico, fazia questão de ver seu futebol na
televisão do quarto do hospital. Porém, não conseguia mais comemorar o gol com
o mesmo entusiasmo que antes. Agora, um leve acenar da cabeça satisfeito pagava
a dívida.
Dois meses se passaram. Os
médicos haviam mudado de prognóstico como uma mulher muda de sapatos.
“Instável” passou a ser o seu apelido. Talvez mais duas semanas. O Inter havia
se classificado para a final do Gauchão. Era uma final contra o Grêmio. Todo
gremista ou colorado de respeito sabe que Gre-Nal na final de um Gauchão é
guerra, tchê. Peleia braba. De faca! Mas ele andava muito fraco para
essas coisas... É, não seria a mesma coisa.
Apesar de Domingo ser a final, os
médicos disseram que ele não passaria de Sábado. Na tarde de Domingo, todos
estavam inseguros e temerosos pela notícia. Mas ele continuava “instável”.
Aliás, para alguém com esse quadro, ele até ficou “estável”. Filhos, primos,
amigos distantes foram visitá-lo para conversarem. Para se despedirem, de fato.
Um último momento em busca daquela lembrança que só quem viveu entende. Aquele
desespero de saber que o melhor filme que vimos está chegando ao fim. Um amigo
seu estava contando da vida para ele. Parecia uma confissão: o amigo sentado na
cadeira de cabeça baixa e cotovelos apoiados nas pernas conversando e ele
deitado na cama, cheio de máscaras e tubos. De repente, ele se mexe. A mão fraca e balançante aponta para seu
amigo. Ele logo pega um lápis e uma folha de papel (método sugerido pelos
médicos para manterem uma comunicação entre ele) e entrega ao doente. Seu amigo
se espicha para poder ver melhor o que ele estava escrevendo.
-
Gol? – ele repete em voz alta. – Seu colorado filho da puta, tu aí morrendo e
se preocupando com a final do Gauchão?
Não houve resposta. Os olhos
cinza e brilhantes do “colorado filho da puta” olhavam para seu amigo como se
fosse um último pedido. Uma súplica. Então, seu amigo ligou a televisão. Estava
no segundo tempo. Jogo empatado: 1 X 1.
No outro dia, a notícia dos
médicos faz todos os telefones da família gritarem:
-
Morreu?
-
Então, morreu?
-
Como assim “morreu” !?
-
Hein?
No velório, mistura de conversa
sobre o falecido e sobre a arbitragem do Gre-Nal. Alguns comentários eram sobre
a força do homem; outros, sobre a teimosia e sobre o fanatismo. Os médicos
haviam dito que ele não passaria de Sábado. Domingo estava vivo e alegre vendo
seu time ser campeão do Gauchão. Segunda-feira, às quatro horas da manhã,
estava morto. Se ele era ou não o colorado mais fanático que eu já vi, não sei,
só sei que a Morte não liga para gostos políticos, religiosos e futebolísticos. Antes de ser enterrado, conforme
escrito no testamento, seu caixão foi coberto com a bandeira do Internacional
ao som do Hino do clube.
“Glória ao desporto nacional...”
Matheus I. Mazzochi